Referências à música no texto poético de Neto

Há uma música intrínseca aos desígnios e propósitos mobilizadores da luta de libertação de Angola, na qual José Eduardo dos Santos, enquanto compositor e intérprete, teve um papel de suma importância, e um outro segmento artístico, de natureza literária, plasmado na poesia de Agostinho Neto, que celebra a mística do sagrado, e realça os mais nobres preceitos da religiosidade africana e universal.

Não pretendemos, com esta modesta contribuição, abordar de forma exaustiva as inúmeras referências à música na poesia de Agostinho Neto. Contudo, seleccionamos apenas os versos que mais nos pareceram propícios a uma sólida argumentação interpretativa, pela sua densidade literária e alcance estético, e que realçam a música, na sua dimensão simbólica e nos seus variados desdobramentos semânticos.

Agostinho Neto revela-se, de forma criativa, revendo-se na sua africanidade, através da música, desconstruindo toda a intencionalidade que impõe, como únicos, os valores artísticos da cultura ocidental, representados pelo colonizador. O negro, e a sua cultura, são categorizados, pela versificação, à condição de elementos de reflexão filosófica, conceptualizando uma dimensão existencial própria e endógena, do ser africano perante o mundo, inserido nos diferentes contextos da escravatura.

Os gritos de revolta ecoavam, intempestivos, na música e na esperança dos oprimidos, num compasso sincopado, rumo à luta heróica que ditou a independência e a consequente conquista da liberdade. Foi assim no engajamento político e, de modo semelhante, aconteceu na arte poética de Agostinho Neto.

Poesia e influências

Agostinho Neto terá sido influenciado pela liturgia da igreja protestante, o pai foi pastor, um aspecto da sua formação que ditou o ritmo e a génese temática dos seus versos, sendo evidentes, na globalidade da sua obra, as referências reiteradas à música, no sentido lato do termo, em plena conjugação e harmonia com a natureza: Nós da África imensa/ e por cima da traição dos crocodilos / através das florestas majestosas invencíveis no rodar da vida / no som harmonioso das marimbas em surdina… (Sangrantes e germinantes, 1953). Política e literatura surgem assim como dois vectores de clara socialização que se irmanam, “misturados em estranha orquestração”, numa poesia que se reputa intemporal, visionária, humanista e de clara afirmação universal. Ritmo, harmonia e melodia atravessam a poesia de Agostinho Neto: Ansiedade/ ao som da viola/ acompanhando uma voz/ que canta sambas indefinidos (…), (Sábado nos Musseques, 1948) eram assim as nostálgicas tertúlias dos musseques, retratadas, em versos, nos encontros musicais da época.

Aspiração

O poema “Aspiração” transborda literalmente de música: Ainda o meu canto dolente/ e a minha tristeza/ no Congo, na Geórgia, no Amazonas (…). Aqui a musicalidade atravessa a história do mundo, particularizada pelo canto “triste” e “dolente” do poeta, numa voz que se divide ao longo dos trajectos escarpados da escravatura. Pode-se ainda subentender, destes versos, o prenúncio da emanação dos primeiros acordes do jazz na América do Norte, e a expansão da cultura africana pelo mundo.

No mesmo poema, o poeta celebra a musicalidade da noite africana e do seu canto, entendidos como leitmotiv do engajamento na luta anticolonial: Ainda/ o meu sonho de batuque em noites de luar/ ainda os meus braços/ ainda os meus olhos/ ainda os meus gritos/ Ainda o dorso vergastado/ o coração abandonado/ a alma entregue à fé/ ainda a dúvida// E sobre os meus cantos/ os meus sonhos/ os meus olhos/ os meus gritos/ sobre o meu mundo isolado/ o tempo parado (…)

A música também acontece como antídoto à pobreza e ao sofrimento do homem africano plasmada na sonoridade dos instrumentos: Ainda o meu espírito/ ainda o quissange/ a marimba/ a viola/ o saxofone/ ainda os meus ritmos de ritual orgíaco (…) … E nas sanzalas/ nas casas/ no subúrbios das cidades/ para lá das linhas/ nos recantos escuros das casas ricas/ onde os negros murmuram (…) Ainda// O meu desejo/ transformado em força inspirando as consciências desesperadas. (Aspiração, 1949).

As referências expressas à música e à generalidade dos ritmos negros do mundo sustentam a estética e a literariedade da poesia de Agostinho Neto, ora como factor de equilíbrio entre a história e a construção estética, em contraponto à dimensão épica do texto, ora como alusões de uma filosofia endógena, concretizada por uma manifestação artística tipicamente africana, a homenagem à música e à dança, juntando-se aos seus irmãos negros: Palpitam-me/ os sons do batuque/ e os ritmos melancólicos do blue// Ó negro esfarrapado do Harlem/ ó dançarino de Chicago/ ó negro servidor do South/ Ó negro de África/ negros de todo o mundo/ eu junto ao vosso canto/ a minha pobre voz/ os meus humildes ritmos./ (Voz do sangue, 1951).

A música, e todo o seu universo semântico, nem sempre aparecem de forma expressa, ocorrendo muitas vezes de forma metaforizada associada a entes do mundo animal e vegetal: Sons de grilhetas nas estradas/ cantos de pássaros/ sob a verdura húmida das florestas/ frescura na sinfonia adocicada/ dos coqueirais/ fogo/ fogo no capim/ fogo sobre o quente das chapas do Cayatte (…) e o reforço anafórico do lexema «ritmo»: ritmo/ Ritmo na luz/ ritmo na cor/ ritmo no movimento/ ritmo nas gretas sangrentas dos pés descalços/ ritmo nas unhas descarnadas// Mas ritmo/ ritmo. // Ó vozes dolorosas de África! (Fogo e Ritmo).

Kissanguela

Santos Júnior, um dos principais integrantes do agrupamento Kissanguela, fez um depoimento sobre a afeição de Agostinho Neto pela música, e em especial pelo seu grupo, nos seguintes termos: “Agostinho Neto nutria uma afeição especial pelo Kissanguela, e quando pudesse, sobretudo nos intervalos ou nas noites de descanso, depois dos concertos, falava connosco, dava-nos conselhos e emitia opiniões sobre a nossa orientação musical”. De notar que o agrupamento Kissanguela chegou a acompanhar as deslocações presidenciais do Dr. Agostinho Neto a vários países africanos, incluindo Cabo Verde e Guiné Conacry.

Aniversário

Comemorado desde 1980, o dia 17 de Setembro é celebrado numa altura em que Angola dá sinais evidentes de reconstrução, em vários domínios, respondendo à máxima do fundador da nação, segundo a qual, “o mais importante é revolver os problemas do povo”.

Torna-se cada vez mais necessário reconstituir a história cultural de Angola, dignificando a memória e prestigiando o legado dos nossos heróis, e as figuras de relevo que tornaram possíveis a conquista e a celebração da independência de Angola.

A Gala do herói nacional e do fundador da nação, no seu 90º aniversário, é uma das formas de respeitar a nobre memória de Agostinho Neto, enquanto político, poeta e homem de cultura, honrando, desta forma, a grandeza de todos os heróis angolanos.

Neste 17 de Setembro, o fundador da nação faria 90 anos, e continuam actuais os seus princípios políticos e o alcance visionário do seu pensamento estratégico sobre o desenvolvimento de Angola.

Urge criar espaços de debate sobre a herança cultural e política do legado de Agostinho Neto, revivendo a sua memória e os seus feitos, contribuindo, desta forma, para um conhecimento mais alargado do conjunto da sua imponente obra literária, pelas gerações mais jovens, e do inequívoco contributo dos nossos heróis no processo da luta de libertação anti-colonial. O CD “Fogo e ritmo, tributo a Agostinho Neto”, no seu 90º aniversário, a ser lançado hoje, é um contributo à divulgação da obra poética de Agostinho Neto, através da música, constituindo uma estratégia de aproximação e conhecimento da sua dimensão literária pelas gerações mais jovens.

O simbolismo da totalidade da obra de Agostinho Neto está consubstanciado no êxito do processo da luta de libertação nacional, cuja dimensão épica culminou com a independência de Angola, e devemos comemorar, com dignidade o 17 de Setembro para reviver e dignificar um importante momento da nossa história cultural e política. Nesse sentido, a dignificação dos nossos heróis e a consequente defesa do património cultural constituem ingentes tarefas, cujos contornos passam pela formação dos jovens em domínios especializados, visando o restauro e divulgação da generalidade do espólio patrimonial de Angola.

 

 

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