Religiosos e pesquisadora explicam retrato equivocado de escravizado como entidade religiosa, em loja do aeroporto de Salvador

Enviado por / FonteG1

Loja justificou que imagens de negros acorrentados seriam a representação dos Pretos Velhos, que são entidades de religiões de matrizes africanas, especialmente a Umbanda.

A loja Hangar das Artes, que fica no aeroporto de Salvador, causou polêmica após vender imagens de homens negros escravizados, e afirmar que se tratava da reprodução da imagem dos Pretos Velhos, entidade de religiões de matriz africana. O caso foi compartilhado na internet por um historiador carioca, que ficou indignado com a representação.

Nesta terça-feira (8), o g1 conversou com religiosos – um deles o presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Ameríndia (AFA) – e uma pesquisadora, que explicaram o porquê do símbolo escravocrata ter sido equivocadamente associado aos Pretos Velhos.

Leonel Monteiro, que além de ser o representa da AFA também é ogã de Ossaim, na casa Oxumarê, explica a origem e representação das entidades religiosas.

“Pretos Velhos e Pretas Velhas são espíritos livres. São espíritos de negros livres de qualquer processo terreno que tenham passado, incluindo a escravização. São entidades de luz, que trabalham na cura, para abençoar e aconselhar a todos que os procuram. A impressão que eu tenho é que eles quiseram cobrir um grande erro, o de vender a imagem de pessoas escravizadas, com outro grande erro, que é associar correntes a um espírito livre e benigno” , argumentou.

“Além deles ferirem e atingirem toda a população de negros e negras, com uma representação de algo que já foi doloroso e danoso, como a escravidão, eles também atingem quem cultua religiões de matrizes africanas, especialmente a Umbanda. Com isso, potencializam o ódio religioso.

Leonel também destacou que, independentemente da justificativa equivocada de que seriam entidades religiosas, a figura de pessoas negras acorrentadas não deveria ser replicada.

“A escravização é algo abominável, que deveria ser extirpado na nossa sociedade. Não é algo para ser exposto em vitrine. É motivo de vergonha. Ainda mais em um ambiente onde circulam pessoas de todo o país, vendo essa aberração. Colocar na vitrine algo tão danoso para a imagem e cultura é racista, sim. O racismo ele aflora de várias formas e a gente não pode normalizar isso”.

O líder do terreiro de Umbanda Paz e Justiça, Raimundo Troccoli, reforçou que o erro está na associação errada de uma entidade acorrentada, e não necessariamente na venda de imagens religiosas.

“Quando se coloca uma imagem dessa, exposta, não deixa de se estar incentivando a escravidão, ainda mais quando a gente percebe que não tem branco acorrentado, só tem negro. O problema não é colocar a imagem do Preto Velho à venda. As pessoas vendem as imagens do Senhor do Bonfim, de Nossa Senhora, por exemplo”, pontuou.

“Quando se coloca a corrente na mão, no pé, no pescoço, se coloca ali um peso negativo de castigo que não é verdadeiro e que incentiva o racismo. Já que é para homenagear, por que não colocar um Preto Velho bonito, arrumado, de paletó, como ele é?”, questionou Raimundo.

A doutoranda Carla Nogueira, que é pesquisadora de religiões de matrizes africanas, reiterou que o Preto Velho não pode estar associada à imagem da escravidão.

“A figura dos Pretos Velhos não têm nenhuma ligação com essa imagem negativa e escravocrata, que o racismo tenta colocar. Nossas simbologias são positivadas através do elemento da cura, da resistência, do cuidado, da sabedoria, e não desse formato de escravização”.

Posicionamento da loja e protestos na internet

Religiosos e pesquisadora explicam retratação equivocada de figura escravizada como entidade religiosa, por loja no aeroporto de Salvador — Foto: Reprodução/Redes Sociais

A nota de retratação da loja Hangar das Artes, em que o estabelecimento associa a imagem dos negros escravizados aos Pretos Velhos, foi publicada na internet. Com a postagem, várias pessoas protestaram na rede social. [Veja nota completa abaixo]

“Pior que a venda, só a ‘justificativa’ de vocês. Eu nem vou escrever o que vocês merecem, não vale a minha energia… PIADA! Completo ABSURDO”, escreveu uma mulher

“Gente, melhorem nas justificativas de se tentar justificar o injustificável. A venda já é péssima, agora acrescentar a fé e crenças de outros como justificativa é o pior. Vocês o fazem, porque sabem que não serão afetados por isso, pois grande parte dos que turistam por Salvador, a cara gente branca, compra essa desculpa e também essas imagens, porque pra branquitude se justifica e se aceita”, argumentou um homem.

“Privilégio é isso. A exposição das peças, a descrição, a venda, e, depois da repercussão soltar uma nota dessas. Não vou desejar que melhorem porque não acredito que isso vá acontecer. O $ [dinheiro] de vocês tá garantido, e de privilégio em privilégio vão tocando os negócios. Que coisa patética, pra dizer o mínimo. O racismo perdura porque segue sendo lucrativo”, complementou uma outra internauta.

Depois das manifestações nas redes sociais, a loja não se posicionou mais sobre o assunto. Veja nota completa abaixo:

“A loja Hangar das Artes vem a público se retratar e esclarecer os fatos ocorridos na manhã de hoje (07/02/2022).

Trata-se de uma empresa que emprega inúmeras pessoas, atuante no mercado de artesanato e obras de arte há mais de 20 anos, comercializando e divulgando a confecção de obras de diversos artistas regionais, sempre incentivando a produção daquele pequeno artesão cujo seu sustento depende exclusivamente de sua arte.

Todas as obras que exibimos são voltadas para a exaltação da cultura e história baiana e brasileira. Nossa loja está localizada no Aeroporto de Salvador e sempre exaltou as diversas culturas, com ênfase na cultura africana, já que temos orgulho de demarcar que somos, provavelmente, a cidade mais negra fora de África. Sempre com muito respeito e admiração.

As imagens que estão circulando, de algumas de nossas esculturas, tratam-se da imagem do Preto(a) Velho(a) – espíritos que se apresentam sob o arquétipo de velhos africanos que viveram nas senzalas, majoritariamente como escravos, entidades essas que trabalham com a caridade e cuidam de todas as pessoas que os procuram para melhorar a saúde, abrir caminhos e ter proteção no dia a dia. Por isso, algumas das peças possuem correntes, na tentativa (ERRÔNEA) de retratar a história dessa entidade de maneira literal. Erramos na forma em que as peças foram expostas e em descrevê-los apenas como escravos, apagando, de certa forma, a história que carrega.

Pedimos nossas mais sinceras desculpas a todos que se sentiram feridos e menosprezados pela maneira como conduzimos às coisas. Nossa intenção JAMAIS foi menosprezar, ferir ou destituir da imagem de uma entidade tão importante e a potência de sua história. Nossas correntes foram quebradas! E não queremos de maneira alguma trazer de volta memórias desse passado tenebroso e vergonhoso.

Por isso, retiramos todas as peças de circulação afim de minimamente nos retratar diante do ocorrido. Sabemos que não se apaga o que foi feito, mas reconhecemos a nossa falha e não tornaremos a repeti-la, não só pela repercussão que houve e sim por não condizer com a nossa verdade.

Nossas sinceras desculpas pelo ocorrido”.

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