Renata Varella: A dona do clube que reconstrói a autoestima de mulheres negras

Ela criou o ‘Clube das Pretas’ para cuidar dos cabelos crespos de um jeito verdadeiro: “Conhecimento sobre o cabelo crespo é fundamental para saber tudo: quem você é, de onde veio e porquê não se sentia bonita”.

Por Lola Ferreira, Do  HUFFPOST BRASIL

Ao fim de uma pequena vila aos pés do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, está uma casinha branca de portas cor-de-rosa. O tom forte, que se destaca ainda mais quando o sol bate na pintura, anuncia que aquele não é um lugar comum. É na pequena casa que funciona o Clube das Pretas, criado há menos de um ano por Renata Varella, 32, em parceria com a amiga Andressa, com quem é “unha e carne” até hoje.

“A gente quer quebrar o paradigma da marginalidade. Tem um pensamento que a mulher negra tem que se cuidar sempre numa salinha, num bequinho, como se não merecesse ser bem tratada. O clube é um lugar à altura da mulher negra e a gente vai dar o que ela precisa. O clube é de todo mundo, mas pensado para as mulheres negras porque a gente que não tem aonde ir”, pontua.

Tem um pensamento que a mulher negra tem que se cuidar sempre numa salinha, num bequinho, como se não merecesse ser bem tratada.

Para dar às mulheres negras o que ela também sentia falta, Renata arriscou e abandonou completamente sua carreira em educação corporativa. Hoje o clube demanda todo o seu tempo, até aos fins de semana e feriados. É que há clientes fora do Rio de Janeiro e até do Brasil. E a ideia inicial de uma consultoria sobre cabelos crespos, com dicas de como cuidar melhor dos fios que outrora foram tão marginalizados pela indústria dos cosméticos, sem apelar para mudanças químicas, mudou — “o clube é orgânico”.

Renata percebeu que a clientela tinha necessidade de ver o cabelo repaginado antes de começar a cuidar dele, e que só as dicas não eram suficientes. Junto com Andressa partiu em busca de especializações, mesmo sem nunca ter trabalhado com cabelos, e encontrou outro problema. No Rio de Janeiro, especializações pensadas para cabelos crespos e cacheados são poucas. Em São Paulo, há até um pouco mais. Mas de pouco em pouco, Renata criou sua própria metodologia de lidar com os cachos e crespos. “Cada cabelo é um novo capítulo de um livro. A gente aprende todo dia. A nossa maior capacitação é o dia a dia. Isso aumenta nosso leque de experiência e assertividade.”

Meu sonho é que a gente nem fale mais de cabelo, que se possa nascer, acordar e gostar do cabelo como é.

Os primeiros meses do clube foram em uma sala sublocada em um salão no conturbado centro do Rio de Janeiro. Mas a organicidade logo demandou um espaço maior. Agora, a casa fica em um bairro chique, numa rua quase escondida, e é vizinha de famosos. “O clube não está na zona sul à toa. A gente tem que ocupar os espaços. É estranho para os meus vizinhos verem um monte de mulher negra entrando e saindo daqui. As pessoas têm que se acostumar que o negro não vem só para limpar. Ele vai entrar para consumir, gastar e oferecer cultura, conhecimento.”

É estranho para os meus vizinhos verem um monte de mulher negra entrando e saindo daqui. As pessoas têm que se acostumar que o negro não vem só para limpar.

VALDA NOGUEIRA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

Renata fala dos seus vizinhos porque eles o são muito além do horário comercial. Quando o clube se mudou, ela foi junto. Agora a sua casa e o clube são uma coisa só, e é assim desde o começo. O clube surgiu no momento em que Renata começava a se reencontrar com a sua identidade e ancestralidade, e ele existir também é um empurrão para sua própria autoestima. Pelas cadeiras da casa de portas e janelas coloridas já passaram mães, crianças, adolescentes, advogadas, médicas, faxineiras e carteiros. Cada pessoa com uma história e prestes a uma nova descoberta. Mas nem sempre tudo são flores.

Renata Varella é a 90ª entrevistada do projeto “Todo Dia Delas”, que celebra 365 Mulheres no HuffPost Brasil.  (VALDA NOGUEIRA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL)

“Ainda me considero em transição, ainda não me amo completamente. E tem dias que não é fácil. Mas tem outras mulheres dependendo que eu as ajude a lidarem com suas questões. A questão me ultrapassa, é muito maior. Não sou só eu. Por mais que eu não acorde bem, quando o atendimento começa, vem uma mágica e uma energia mais forte”, define ela.

A transição é o processo em que mulheres de cabelos naturalmente crespos deixam os fios naturais crescerem, enquanto se despedem dos fios alisados ou tratados quimicamente, em geral por anos. Para algumas, dura o tempo de se encorajar para um corte radical. Para outras, dura outros vários anos. Qualquer química que modifique os fios é proibida dentro do Clube das Pretas, mas esse contato com algo até então desconhecido pode ser muito doloroso.

Por mais que eu não acorde bem, quando o atendimento começa, vem uma mágica e uma energia mais forte.

Hoje, a casa recebe bazares e rodas de conversa, e futuramente irá discutir a saúde da mulher negra. (VALDA NOGUEIRA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL)

“Todo dia as mulheres choram. A última que atendi foi uma menina de 13 anos, que chorava porque ela nunca tinha visto o cabelo solto, mexendo e balançando. Parece que a gente não pode ter a beleza, mas pode sim, é só saber como. Aqui no clube é o momento de se amar, se ver bonita, ver um cabelo cuidado e saudável. Não aprendemos a ver o cabelo bonito. Essa oportunidade não foi dada, porque quando a gente nasce, modifica o cabelo e pronto”, analisa.

Sem medo de reclamações sobre “segregação”, Renata firma o pé para dizer que está construindo um espaço seguro e acolhedor para mulheres negras, e que está em constante evolução. “É um processo contínuo de entender o impacto do clube, os desdobramentos na vida de outras pessoas e mulheres negras é uma novidade”, avalia.

Não aprendemos a ver o cabelo bonito. Essa oportunidade não foi dada, porque quando a gente nasce, modifica o cabelo e pronto.

Para Renata, é o conhecimento uma das principais armas contra o racismo. (VALDA NOGUEIRA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL)

Hoje, a casa recebe bazares e rodas de conversa, e futuramente irá discutir a saúde da mulher negra. Para Renata, é o conhecimento uma das principais armas contra o racismo: “Para cuidar de cabelo, sim, mas pra falar de qualquer coisa. Conhecimento é poder. Conhecimento sobre o cabelo crespo é fundamental para saber tudo: quem você é, de onde veio e porquê não se sentia bonita. Conhecimento é um dos pilares do clube.”

E para uma mulher negra que vive numa sociedade “que cresceu e foi construída com princípios racistas”, o sonho é que locais como o que ela mesmo constrói deixem de ser necessários. “Meu sonho é a desconstrução de tudo isso. É que a gente nem fale mais de cabelo, que se possa nascer, acordar e gostar do cabelo como é. Que todo mundo aceite e entenda que cada um tem seu cabelo e é bonito de qualquer jeito.”

 

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