Resistência e o exercício diário de empatia: A trajetória de uma mãe de transexual no Brasil

“Eu não conseguia aceitar porque eu não entendia. Não existia o Google; não tinha referências. Mas escolhi o caminho do diálogo.”

Por Ana Beatriz Rosa Do Huff post Brasil

Aos três anos, Raphaela Marques usava os vestidos da mãe. Dançando, em frente ao espelho, com a toalha enrolada na cabeça, ela pedia a atenção e dizia: “Olha, mamãe, como os meus cabelos são lindos!”.

As memórias são de Ana Marques, advogada, e poderiam ser de qualquer outra mãe não fosse um detalhe que marcou toda a sua relação com a maternidade: Rapha é transexual.

“É díficil. Não foi tudo lindo. Tudo o que você imaginar das piores coisas já foram ditas para a minha filha. Há quase duas décadas eu nem sabia o que era a transexualidade. Na minha cabeça eu tinha um filho gay. Mas eu tinha um filho homem, de corpo totalmente masculinizado, que não se identificava como tal. Eu não tinha parâmetros para entender aquilo”, desabafa a mãe em entrevista ao HuffPost Brasil.

 Ana muitas vezes se viu frente ao dilema de não conseguir ajudar a filha. Mãe solo, mesmo com o apoio financeiro e psicológico do pai, a responsabilidade de compreender cada detalhe da batalha que a filha vivia era dela.

Afinal, ser transexual, no Brasil, é uma resistência diária.

O País é a nação que mais mata travestis e transexuais do mundo. E essa morte ocorre de variadas formas. O não-diálogo, o não-reconhecimento, a intolerância, a ausência de políticas públicas e o maior índice de consumo de pornografia trans são apenas algumas delas.

“Vivemos numa sociedade heteronormativa e tudo que difere do padrão é visto como doença, o que acaba sendo uma forma de controlar e produzir comportamentos esperados e desejados. As políticas públicas e os recursos disponíveis para atender as necessidades de travestis e transexuais são insuficientes. O diálogo é fantasia e o reconhecimento dos direitos é uma ilusão. O que há é uma concessão a contagotas de aparentes avanços, enquanto necessidades reais não são atendidas“, defende ao HuffPost Brasil Maria Lucia Pereira, psicóloga e especialista em Sexualidade Humana pela Faculdade de Medicina da USP.

A psicóloga argumenta que ainda há uma forte ideia arraigada no senso comum de que a transexualidade é um transtorno mental. Para refutar tal ideia, ela explica que trata-se de uma questão de identificação.

“Falar em diagnóstico é algo próprio para doenças, e transexualidade não é uma doença. O Conselho Federal de Psicologia, em 2013, explicitou que a transexualidade e a travestilidade não constituem condição psicopatológica, ainda que não reproduzam a concepção normativa de que deve haver uma coerência entre sexo biológico/gênero/desejo sexual. Em outras palavras, a transexualidade é uma questão de identidade. Não é uma doença mental, não é uma perversão sexual, nem é uma doença debilitante ou contagiosa”, explica.

Jaqueline Gomes de Jesus é doutora em Psicologia Social e pesquisadora da Universidade de Brasília. Em seu trabalho Orientações sobre identidade de gênero: Conceitos e termos, ela explica como a questão de gênero é uma construção social.

“Como as influências sociais não são totalmente visíveis, parece para nós que as diferenças entre homens e mulheres são ‘naturais’, totalmente biológicas, quando, na verdade, boa parte delas é influenciada pelo convívio social. Além disso, a sociedade em que vivemos dissemina a crença de que os órgãos genitais definem se uma pessoa é homem ou mulher. Porém, a construção da nossa identificação como homens ou como mulheres não é um fato biológico, é social. Sexo é biológico, gênero é social, construído pelas diferentes culturas. E o gênero vai além do sexo: o que importa, na definição do que é ser homem ou mulher, não são os cromossomos ou a conformação genital, mas a autopercepção e a forma como a pessoa se expressa socialmente.”

Mas se hoje essas informações possuem algum sentido para Ana Marques, é porque ela e sua filha Raphaela enfrentaram juntas uma trajetória de preconceitos que são superados dia a dia por meio do diálogo e da empatia.

Em depoimento ao HuffPost Brasil, a advogada compartilhou a sua experiência.

eu filho é trans, e agora?

“Aos 8 anos, a Rapha me disse que estava apaixonada por um menino da sua escola. A gente entendeu que ela poderia ser homossexual. A minha primeira reação foi a de trocar ela de período da escola para ver se ia passar. Naquela época era tudo muito tabu. Mas obviamente que isso não ajudou em nada. Tudo só foi aumentando. Aos 13, a ficha começou a cair. Em uma conversa na cozinha da casa de sua avó, ela olhou para mim e falou: ‘Mamãe, não sei quem eu sou. Eu me olho no espelho e não me enxergo. Eu não gosto do meu cabelo curto, eu não gosto do meu cabelo enrolado, eu não gosto do que eu sou’. Eu nunca vi a minha filha chorar tanto.”

Eu não conseguia aceitar o que ela era simplesmente porque eu não entendia. Não existia o Google, sabe? Eu não tinha referências. Eu fiquei desesperada e fui buscar ajuda. Mas aí você também enfrenta o obstáculo que é encontrar pessoas despreparadas para lidar com o tema. Me indicaram um médico que ainda entendia a transexualidade como uma doença mental, uma disforia de gênero. São nesses momentos que nasce a rejeição. Você simplesmente não quer conceber que tem um filho assim e que vai ter que lidar com isso.”

Exclusões sistemáticas

“Fui atrás de informações. Me indicaram o Hospital das Clínicas, em São Paulo, onde tive acesso a uma equipe médica ultraprofissional para acompanhar a Rapha. Mas isso só foi possível porque o pai dela tinha a condição financeira de bancar o tratamento. Mas ela não ia parar a vida dela por isso. E foi aí que começou a saga das escolas.

Ela estudou até o 9º ano em uma mesma escolinha aqui em Guarulhos. Quando ia começar o 1º ano do Ensino Médio, procuramos mais de oito instituições para ela se matricular. Era sempre a mesma coisa. Eu ia até a escola, apresentava a Rapha, explicava que ela estava em transição e que eu precisaria do apoio da escola. A diretora dizia que iria conversar com os pedagogos e me retornaria. Nunca recebi o retorno de nenhuma delas.

Resolvi tentar em São Paulo. Nos mudamos para o Itaim Bibi. Conheci uma escola por meio de um site que se dizia defensora da diversidade. Achei incrível! Fui conhecer, a diretora adorou a Rapha e disse que seria um enorme aprendizado para todos tê-la como aluna. Matriculei a minha filha sem hesitar. Um mês depois, a Rapha começou a reclamar que achava o ensino da escola muito fraco. Ela dizia que tinha dias que ela dava aula para os colegas de classe, que ensinava-os a contar e escrever. Fui até a direção para entender o que estava acontecendo. E aí vieram as surpresas. A Rapha tinha que usar o banheiro de deficiente físico. Ela e seus colegas ficavam em uma área separada da quadra, enquanto os outros alunos permaneciam no pátio, divididos por uma grade. Então a diretora assumiu que havia colocado a Rapha em uma turma especial, dedicada a alunos que tinham déficit cognitivo. Aquilo foi um soco no estômago. Foi pior do que uma exclusão.

Em outra escola, minha filha era alvo constante de bullying e violência. Aquilo afetou muito ela. O quadro de depressão piorou. Ela simplesmente não ia aguentar. Decidimos que ela não precisava ter que passar por isso para frequentar uma escola. Mas ela quem saiu perdendo. Minha filha perdeu esses três anos de convívio escolar, de poder fazer amigos, de se sentir segura, de confiar no ser humano.”

A transição

“Aos 14 anos, a Rapha foi uma das mais jovens trans a iniciar o tratamento hormonal no Brasil. Foi preciso bloquear os hormônios masculinos e fazer a transição hormonal para os feminimos. E em paralelo a isso teve todo o processo de autoaceitação. A transição é cruel. E os padrões de beleza só pioram isso. Estar gorda, não ter mama, o cabelo ainda não cresceu. Tudo era muito intenso e era uma mistura de desânimo e vergonha.

Como mãe, eu entendi que durante esse processo eu ganhei uma filha corajosa, irreverente e que me ensina a cada dia. Por que eu iria deixar o medo e a tristeza tomarem conta?

Aos 16 anos, ela queria sair do Brasil para poder fazer a cirurgia de adequação de sexo, mas aconselhamos ela a aguardar até que estivesse maior de idade e 100% confiante no procedimento. Em 2016, aos 22 anos, com apoio de uma equipe de psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas, ginecologistas e cirurgiões, ela realizou o procedimento.

Nunca vai mudar o estigma ou o título que ela tem. Ela sempre será uma trans. Até mesmo com nome social resolvido. Mas a cirurgia não é pra o outro, é pra ela. Para a pessoa Raphaela. Não é para a sociedade, para o namorado ou para os pais. É algo muito pessoal e individual. E eu percebo que muita coisa na cabeça dela se tranquilizou depois da redesignação.”

Informação é o caminho para o respeito

“A gente via que tinha algo diferente com a Rapha. E na minha opinião só não enxerga o pai que não quer. Mas eu também não acho que os pais precisam lidar com essas situações na pressa. Tudo tem o seu tempo, não se pode antecipar a fase de ninguém. Não é porque seu filho gosta de usar um vestido aos três anos de idade que ele é ou deixa de ser alguma coisa.

Grande parte do preconceito existe devido à falta de informação. Mas os pais são seres humanos. Eles geram seu filho, e infelizmente ou felizmente, criam expectativas, sonhos e planos que nem temos direito. Errado ou não, isso acontece.

É preciso deixar claro que ninguém escolhe ser trans, lésbica, gay. Ninguém ‘vira’ nada da noite para o dia. é um processo interno que precisa ser respeitado.

Mas a opção pelo amor, por entender o seu filho sempre será o melhor caminho. A expulsão do filho de casa é a última e a pior opção que os pais podem fazer, apesar de eu entender o medo que tudo isso gera. E eu também considero a contrapartida do filho que pode até tentar enfiar goela abaixo para que o pai entenda 100% do que ele está vivendo.

Hoje, eu e a Rapha vivemos em um equílibrio. Se a gente tem alguma chance de encontrar essa harmonia entre as tensões dos pais que não conseguem entender e dos filhos que tem sim a necessidade de serem aceitos, é só por esse caminho do diálogo e do amor.

Muitos preconceitos começam dentro de casa e se espalham em todas as nossas relações. Se a gente alimenta isso, que dirá na rua. O que vai parar um desconhecido de violentar o nosso filho?”

Para especialistas, terapia pode auxiliar no diálogo

Edith Modesto, psicóloga, fundou uma grupo de apoio a pais de homossexuais quando o seu sétimo filho lhe contou que era gay.

“O GPH foi o primeiro grupo de pais de LGBT do Brasil. Eu o iniciei quando soube que meu filho caçula era gay, pois não tinha com quem conversar e não havia nada sobre o assunto nas mídias na época”, contou ao HuffPost Brasil.

Modesto, também, foi a profissional que auxiliou Ana Marques nos primeiros contatos com a transexualidade de Raphaela.

Quando a psicóloga sugeriu para a mãe que a jovem poderia se identificar como trans, Ana se lembra com exatidão de ter ficado “muito brava” com a terapeuta.

“Ela me pedia paciência e eu simplesmente não conseguia lidar com aquilo naquele momento”, explica a mãe.

Modesto conta que não há uma melhor hora para a conversa entre pais e filhos acontecer. Mas argumenta que o diálogo precisa ser constante.

“É difícil, mesmo com muita paciência e respeito, acertar a hora de dizer isso para uma mãe, por exemplo. E é por isso que precisamos de um trabalho intenso e educativo sobre questões de gênero.”

Maria Lucia Pereira também chama atenção para a “desmistificação” do que é a transexualidade:

“Os pais são inseridos gradativamente no processo terapêutico para desmistificar a padronização social sobre o conceito de transexualidade, visando, desta forma, facilitar a convivência familiar e de conflitos vivenciados. O acompanhamento psicoterapêutico é importante sempre que nos deparamos com instabilidades emocionais profundas, sejamos transgêneros ou não. O ser humano sempre poderá ser um agente criativo na realidade que o rodeia através da compreensão empática.”

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