Nos últimos momentos antes de sua demissão, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, publicou a portaria 545/2020 revogando a portaria normativa 13/2016, que versava sobre ações afirmativas na pós-graduação.
Como se sabe, a pós-graduação brasileira é composta predominantemente por pessoas brancas e reproduz desigualdades regionais e sociais, como a baixa participação da população negra, historicamente excluída das universidades brasileiras.
A norma de 2016 estabelecia que as instituições federais de ensino superior (Ifes) deveriam apresentar propostas sobre a inclusão de pretos, pardos, indígenas e estudantes com deficiência em seus programas de pós-graduação no prazo de 90 dias. O objetivo era incentivar a criação dessas políticas e, ao mesmo tempo, respeitar a autonomia universitária
A despeito de não ter a mesma força normativa das leis de cotas na graduação e concursos públicos, a portaria foi interpretada como obrigatória por programas e universidades, que passaram a discutir o tema em seus colegiados e conselhos. O resultado é que, nos anos posteriores à sua publicação, a adoção de medidas inclusivas nos programas de pós-graduação aumentou muito.
Dados coletados em minha pesquisa de doutorado deixam claro o papel indutor da portaria. Em 2015, apenas três universidades haviam aprovado resoluções estabelecendo que todos os seus programas de pós-graduação deveriam ter ação afirmativa: a Uneb (Universidade do Estado da Bahia), que o fez em 2002; a UFG (Universidade Federal de Goiás) e a UFPI (Universidade Federal do Piauí), ambas em 2015. Em 2017, mais 14 universidades o fizeram.
O curioso é que, diferentemente das políticas afirmativas da graduação, nas quais os beneficiários são principalmente os alunos de escolas públicas, na pós-graduação as ações têm por foco os pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência, a fim de ampliar a diversidade étnica e cultural do corpo discente.
Não é novidade que o atual governo é contrário às políticas de equidade racial no ensino superior. No entanto revogar as leis de cotas dependeria de uma longa discussão no Congresso Nacional. Além disso, tal medida seria muito provavelmente considerada inconstitucional pelo STF, que já declarou a constitucionalidade das ações afirmativas em 2012 e 2017.
Evidentemente, os programas de pós-graduação e universidades continuam detendo autonomia para criar ações afirmativas para ingresso e permanência de determinados grupos. A revogação da portaria é, portanto, simbólica, mas se soma a outros atos contrários à ampliação da diversidade no ensino superior.
A gestão de Weintraub foi marcada por ataques à autonomia universitária e liberdade acadêmica.
Importante lembrar que, em 2019, o ministro bloqueou 30% das verbas do orçamento para custeio das universidades federais e cortou bolsas de mestrado e doutorado. Como a maioria dos programas exige dedicação exclusiva, a dificuldade de se dedicar somente à pesquisa sem uma fonte de renda levou muitos estudantes a abandonarem seus projetos ou desistirem de ingressar na pós-graduação, o que contribui para uma lamentável elitização de um nível educacional já bastante desigual.
A tentativa do ministro de “acabar” com as ações afirmativas na pós-graduação, contudo, talvez tenha um efeito contrário ao pretendido. Afinal, o tema não tinha tanta visibilidade se comparado com as discussões sobre cotas para graduação nos anos 2000. A revogação trouxe à luz uma política que muitos desconheciam e deu início a um debate que pode contribuir para que departamentos e colegiados comecem a estudar medidas inclusivas.
Anna Carolina Venturini
Pós-doutoranda e pesquisadora do Afro-Cebrap, possui doutorado em ciência política pelo Iesp-Uerj com estudo sobre a criação de ações afirmativas pelos programas de pós-graduação