Rozeli da Silva: A mulher que foi mãe aos 13 anos e hoje tem mais de 300 ‘filhos’

“Tinha 12 anos quando fiquei grávida pela primeira vez achando que ia melhorar. Continuei apanhando dele”, disse, em entrevista ao HuffPost Brasil.

Do HuffPost Brasil

Rozeli da Silva pediu esmola. Fugiu de casa aos 11 anos. Engravidou aos 12. Apanhou do marido. Ganhou a vida trabalhando como gari pelas ruas de Porto Alegre. E esta pode parecer uma vida que tinha tudo para dar errado, certo? Errado.

CAROLINE BICOCCHI/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
Rozeli da Silva é a 28ª entrevistada do projeto “Todo Dia Delas”, que celebra 365 Mulheres no HuffPost Brasil.

Adulta, a gari Rozeli se dedicou a dar rumo às vidas de crianças nas quais enxerga seu próprio passado de rua, mendicância, pequenos roubos, alguma droga e uma filha nos braços aos 13 anos. A ONG Renascer da Esperança fundada por ela atende 300 crianças do zero aos 15 anos no bairro Restinga, periferia de Porto Alegre, com ensino infantil, refeições, aulas e oficinas no contraturno escolar.

Quinta filha de 10 irmãos, ela nunca foi à escola. A mãe trabalhava fora o dia inteiro e ela ficava em casa (brigando) com as irmãs. Pediam as sobras da merenda em escolas de Restinga. Sempre foi rebelde, insubordinada, e aos 11 anos resolveu que preferia morar na rua. “Dormia na casa de um, de outro, fumava maconha com as gurias. Eu sempre fui a rebelde, não gostava de fazer nada em casa. Um dia, briguei com a minha irmã por comida. Eu disse: ‘aqui eu não volto mais. Pode avisar a tua mãe’.”

Só que as gurias gostavam de ir ao centro de Porto Alegre “descuidar”, e foi após um destes furtos em uma loja de departamentos que ela acabou na antiga Febem. Ficou lá dois meses até conseguir fugir. “Um dia, nos pegaram roubando e mandaram pra Febem. Vi a mãe de todo mundo ir buscar elas, e a minha, não”, lembra. Voltou para a Restinga, onde limpava casas em troca de comida e, nesta época, conheceu o primeiro marido – Vilmar, um jovem de 18 anos que a levou para morar com ele e os pais. Usuário de drogas, passava o dia inteiro fora de casa e quando voltava, batia nela. Aos 12 anos, engravidou de propósito, achando que a vida ia melhorar.

“Eu sempre fui a rebelde, não gostava de fazer nada em casa. Um dia, briguei com a minha irmã por comida. Eu disse: ‘aqui eu não volto mais. Pode avisar a tua mãe’.

Não melhorou. Foi depois do nascimento da segunda filha, quando Rozeli tinha 16 anos, que ela conheceu a família “oficial” do pai biológico. Foi acolhida pelos meio-irmãos após mais uma surra do marido e ficou vivendo com eles até que Vilmar foi atrás dela e a levou de volta para casa. A tormenta só acabou quando ele foi preso. “Tinha 12 anos quando fiquei grávida pela primeira vez achando que ia melhorar. Continuei apanhando dele”, conta.

Vilmar ficou na cadeia por 10 anos e quando saiu, Rozeli já tinha casado novamente. Aos 22 anos, tinha cinco filhos (“quatro da barriga e um do coração”, como ela mesma diz) e ainda era analfabeta, mas já tinha fundado a Renascer da Esperança.

“Tinha 12 anos quando fiquei grávida pela primeira vez achando que ia melhorar. Continuei apanhando dele.”

CAROLINE BICOCCHI/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

Contando os dias para se aposentar como gari, Rozeli planeja terminar o ensino fundamental e médio e depois, formar-se em Relações Públicas.

 

Parece um sonho – e foi. Em uma noite de inverno de 1996, Rozeli sonhou que estava em um jardim florido, cercada de crianças, na companhia de uma assistente social do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), profissional que a gari só conhecia por ser encrenqueira no trabalho. Virou ideia fixa. A assistente social seria sua caneta na criação da ONG, que também contou com a ajuda de um advogado servidor do DMLU na época, entre outras pessoas. O objetivo era claro: “não ter gravidez precoce na pré-adolescência, na rua, que nem eu”. Naquele mesmo ano, registraram o estatuto.

Dois anos depois, em 9 de dezembro de 1998, era inaugurada a primeira sede da Renascer, dentro da quadra de uma escola de samba da Restinga. Nesta época, a gari estava aprendendo a ler. Ainda hoje ela não conseguiu completar o ensino fundamental – parou no oitavo ano e ainda tem dificuldade para escrever o próprio nome. Os 30 troféus e as dezenas de fotos dos 13 netos e dois bisnetos que exibe em sua sala ajudam a explicar por quê.

Um dia, nos pegaram roubando e mandaram pra Febem. Vi a mãe de todo mundo ir buscar elas, e a minha, não.

CAROLINE BICOCCHI/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

Aos 22 anos, tinha cinco filhos e ainda era analfabeta, mas já tinha fundado a ‘Renascer da Esperança’.

 

Um ano depois da inauguração, Rozeli saiu de casa após uma briga violenta com o segundo marido. Não foi a primeira nem a segunda com troca de agressões, mas aquela cabeçada foi a gota d’água. Pegou os filhos e foi para uma casa de proteção para mulheres vítimas de violência. Três meses depois, mudou-se para um apartamento longe da Restinga e pediu transferência no trabalho. Ficou cinco anos sem ver o companheiro. Mesmo assim, foi ela quem cuidou dele, doente de câncer.

Em 2008, a Renascer ganhou uma sede própria, também na Restinga, onde Rozeli dá expediente todas as manhãs antes de “rumar” para a capatazia do DMLU no mesmo bairro — ainda hoje ela bate ponto como gari de segunda a sexta-feira, das 13h às 22h. Ali, 190 crianças têm aulas de artes marciais, dança, capoeira, reforço de matemática, finanças, culinária, costura e até futebol americano, graças a um convênio com a Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase).

Em outra sede, 120 crianças de zero a seis anos estudam graças ao convênio com a Secretaria Municipal de Educação. Outras ONGs ajudarão a sustentar cursos profissionalizantes para adolescentes a partir dos 15 anos em uma terceira instalação, que deve começar a funcionar ainda este ano, também na Restinga.

Vi três irmãos pedindo esmola, e a dona de uma ferragem chamou os gurias de marginais. Eu fui lá e xinguei ela. Eles não estavam roubando, estavam pedindo!

CAROLINE BICOCCHI/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL 

Ela considera “uma empresária”, já que a ONG que preside emprega 39 pessoas.

 

O novo centro de treinamento é a menina dos olhos de Rozeli. Ela cansou de perder meninos atendidos pela ONG para as ruas – como os irmãos Maicon, Luiz Antônio e Paulo Sérgio, que frequentavam a Renascer no começo dos anos 2000, e acabaram assassinados aos 14, 18 e 28 anos, respectivamente. Precisa resolver a equação que tem assistencialismo de um lado e renda de outro. “Eles saem daqui com 15 anos e vão para a rua. Precisam botar dinheiro em casa mas, se vão atrás de emprego, a primeira coisa que pedem é currículo. Adolescente da vila precisa ter renda, se não, não fica no curso (profissionalizante). Eles precisam botar dinheiro em casa”.

Contando os dias para se aposentar como gari, em agosto, Rozeli planeja terminar o ensino fundamental e médio e depois, formar-se em Relações Públicas. Se considera “uma empresária”, já que a ONG que preside emprega 39 pessoas. E, depois de passar duas horas contando a sua história sem culpar ninguém pela vida difícil, a primeira queixa-se que faz é quanto ao alto custo representado pelos encargos trabalhistas.

O sermão que deu em seu filho mais novo quando foi preso alguns anos atrás parece ser a máxima que rege a vida dela: “Eu falei: ‘a culpa é só tua’. Cada um busca o seu caminho”.

Eu queria pedir ajuda pra ONG e meu marido achava que iam me xingar de negra ‘ladrona’, que eu tinha de pensar na minha vida e dos meus filhos.

CAROLINE BICOCCHI/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

Na ONG, 190 crianças têm aulas de artes marciais, dança, capoeira, reforço de matemática, finanças, culinária, costura e até futebol americano, graças a um convênio com a Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase).

Ficha Técnica #TodoDiaDelas

Texto: Isabel Marchezan

Imagem: Caroline Bicocchi

Edição: Andréa Martinelli

Figurino: C&A

Realização: RYOT Studio Brasil

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