Ruth Pinheiro, administradora de empresas: ‘Disseram: agora vem essa negra ser nossa chefe’

Uma das principais articuladoras do movimento negro, militante vê na democratização da cultura o caminho para a reparação

POR CELIA COSTA, do O Globo 

“Nasci no Engenho Novo, na Zona Norte do Rio, tenho 66 anos e sou militante na luta pela reparação aos povos africanos. Meu engajamento começou em 1968, quando fui vítima de preconceito no trabalho. Depois, passei a lutar para mudar isso e a atuar em causas sociais”

Conte algo que não sei.

Existe um movimento cultural imenso no Brasil que precisa de recursos, que é o afrobrasileiro. Quando falamos em reparação, a sociedade não consegue entender que isso é um direito. É preciso saber o contexto e o motivo de os negros ainda serem maioria nas favelas, nos prostíbulos e no tráfico de drogas.

O que fazer para mudar essa situação?

É preciso haver democratização do acesso à cultura. Lamentavelmente, apenas uma pequena parcela do orçamento do Ministério da Cultura é destinada à difusão da produção desse segmento. Há falta de acesso aos agentes culturais, e também não há interesse das empresas patrocinadoras.

Por que não há interesse?

As empresas precisam saber que os projetos culturais não são exclusivos para os negros, e, sim, para quem trabalha na divulgação da cultura afro.

Como começou a sua militância?

Em 1968, eu tinha 18 anos e trabalhava na companhia telefônica quando fui promovida a supervisora de um setor. Para minha surpresa e indignação, duas mulheres negras disseram: “A telefônica não é mais a mesma. Agora vem essa negra para ser a nossa chefe.”

E qual foi a sua reação na hora?

Fiquei surpresa, revoltada, mas não senti raiva. Depois, ajudei a formar movimentos até que, na década de 1980, fui convidada a participar do grupo Kizomba, do qual Martinho da Vila fazia parte e promovia o intercâmbio cultural do Brasil com África, Estados Unidos e Caribe.

Já sofreu outros episódios de preconceito?

Inúmeras vezes. Um dos casos denunciei à polícia. Há quatro anos, eu havia me mudado para um prédio novo. No elevador social, uma pessoa disse que o meu não era aquele e apontou para o de serviço. Em outro caso, um amigo da Bahia, negro com cabelo rastafári, ia ficar na minha casa. Vi que ele chegaria antes de mim e pedi que me esperasse na portaria. Quando cheguei em casa, descobri que os vizinhos haviam chamado a polícia.

Você participou do desfile da Vila Isabel, em 1988, com o enredo “Kizomba, a festa”?

Participei. Foi uma felicidade muito grande. Nem os integrantes da escola acreditavam que venceríamos com fantasias tão simples, como as baianas de chita.

Como foi o trabalho no grupo Kizomba?

Trabalhei com exilados da África do Sul e de Angola acompanhando artistas. Ajudei na criação do Instituto Palmares de Direitos Humanos. Depois, criamos o Cadon, que tem a missão de apoiar a cultura e promover a reparação, que inclui políticas públicas para atender os povos que foram dominados.

O sistema de cotas, criticado por alguns segmentos da sociedade, seria uma forma de reparação?

Sim. É uma iniciativa para minimizar os danos, mas não deve ficar restrita à educação. O movimento afro-brasileiro pede cota na cultura e outras iniciativas. Vamos colher assinaturas para a elaboração de um projeto de lei que contemple a reparação histórica e a financeira. Eu não trabalho na reclamação. Minha militância é dar visibilidade.

 

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