Sakamoto – Pena que a memória dos eleitores seca rápido

Por:  Leonardo Sakamoto

Sugiro uma campanha: não vote em partido que, sob sua administração, morreu gente em deslizamento, soterramento, inundação. Desgraça é desgraça, descaso é descaso. Desgraças acontecem, mas parte delas poderia ser prevenida, planejada, antecipada, informada, pois não são novidade. Nesses casos, o que é tragédia vira descaso e pode, inclusive, ser alvo de responsabilização judicial. Ou, ao menos, eleitoral.

Ou melhor: não vote em partido de político que deu declaração idiota a respeito de desastres sob sua responsabilidade. “Precisamos de mais um mandato para fazer as obras necessárias”, “não podemos controlar a vontade divina”, “choveu mais do que o esperado de novo”. Tem gente que reclama que administradores públicos não deveriam tirar férias em momentos de chuvas como agora, enxergam como desrespeito. Eu penso diferente. Se é para ficar falando besteira, não precisa ficar, pode ir passar o mês em algum lugar bem longe, tipo Paris. As pessoas que perderam tudo não precisam ficar sendo torturadas com essas idiotices.

O grande problema é que a memória do eleitor, que afoga a popularidade de políticos durante as chuvas, é dry fit. Seca rapidinho.

Toda a vez que um governo – municipal, estadual ou federal culpa as forças da natureza e a estatística pelos desastres naturais causados pelas chuvas dessa época do ano, me dá uma sensação horrível de vergonha alheia. Sabe aquela que a gente tem quando sabe que um amigo bêbado vai fazer uma burrada descomunal e você fica imaginando que, se fosse você, nunca mais iria querer olhar na cara de outro ser humano? Pois bem, isso. Com a diferença que governos não são meus amigos e que não estamos falando de reputação de bêbado e sim da vida das pessoas.

Ano vem, ano vai – e é sempre a mesma coisa. Administradores públicos reclamando que não daria para fazer nada porque a chuva resolveu cair toda de uma vez, culpando La Niña, El Niño, o calendário Maia… Neste ano, a bola da vez é Belo Horizonte – onde, segundo números divulgados, caiu mais água nos dias 1 e 2 que em todo janeiro. Já na região serrana do Rio de Janeiro (onde mais de 900 pessoas morreram em um mar de lama há um ano) foi divulgado que choveu em dois dias mais da metade do esperado para o mês.

E se choveu mais do que deveria, não há nada que se possa fazer, correto? Bem, isso se, há muitos anos, já não fosse típico a realidade de chuvas atípicas em certas regiões do país. Uma ironia que circula entre os colegas da imprensa nesses dias molhados é que, se todo o ano chove mais do que a média, alguém esqueceu de corrigir a média.

É claro que os cálculos não são simples e levam em conta séries históricas, mas, de qualquer forma, criticar isso tem o mérito de gerar alguns debates: por exemplo, como a realidade é avaliada e quais as medidas tomadas a partir daí. E não estou falando apenas de sistemas de alertas e sim de políticas de habitação decente, saneamento, dragagem de rios, limpeza de vias, campanhas de conscientização quanto ao lixo. O fato é que ocupação irregular, planejamento, plano diretor, reforma urbana são expressões ouvidas apenas no tempo das chuvas. Na seca, evaporam do léxico não só dos mandatários, mas também de pobres e ricos, que continuam construindo, desmatando e poluindo. Suas razões são diferentes, mas o efeito é o mesmo. Vale lembrar que tudo isso dito aí em cima não gera um voto, pelo contrário: quem é o doador que vai ficar feliz por ter a construção de sua casa em uma área de preservação ambiental embargada?

Considerando que quando há um problema urbano os mais pobres são expulsos do lugar onde estavam para um lugar perto da esquina entre o “não me encha o saco” com o “não me importa aonde”, é de se esperar também que a remoção deles de áreas de risco e de locais inundáveis também seja precedida de grandes protestos que irão reverberar nas urnas. Então, ninguém faz nada, só promete e faz cara de preocupado e de entendido. Afinal, é de palavras vazias que vive nossa política.

Nas últimas madrugadas, morros deslizaram, pessoas morreram soterradas. E nos próximos dias, continuaremos a ver as cenas de sempre: alguém será levado pela correnteza e famílias perderão tudo, sendo alojadas em ginásios de escolas públicas. Vão ganhar espaço na mídia, mas o debate vai durar só até o asfalto secar. É principalmente na periferia, onde gente vale menos. Ou melhor, vale algo – mas só neste ano de eleição.

Seria épico se, um dia, uma grande chuva chegasse escura no meio da tarde. Veriam, em pouco tempo, tratar-se de um pé d’água bíblico, maior que as tempestades habituais que atingem paulistas e cariocas. E começasse a cair apenas sobre o Palácio das Laranjeiras, o Palácio dos Bandeirantes, o Palácio Tiradentes e, é claro, o Palácio do Planalto, e as prefeituras das cidades com áreas de risco. Poderia incluir aí também uma chuva localizada sobre a casa dos governantes. A água subiria com o lixo entupindo as bocas de lobo e inundaria tudo, encharcaria tapetes, afogaria alguns carros e arrastaria colchões.

Talvez, com isso, fossem implantadas ações habitacionais e de saneamento para amenizar o sofrimento desse povaréu, que foi empurrado para as várzeas, vales de rios e encostas de morros pela especulação imobiliária e a pobreza. Dividindo a mesma situação, talvez enxergassem no outro não apenas um personagem da matéria da TV. Ou um voto.

 

 

 

Fonte: Blog do Sakamoto

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