Saracura Vai-Vai luta por memória negra no metrô e museu no Bixiga

Linha Uni diz que há respeito dos segmentos etnoculturais, mas não garante museu e Governo do Estado diz que mudança de nome de estação ainda está em estudo

FONTEFolha de São Paulo, por Guilherme Soares Dias
Os amigos Ighor Alexander, Ana Paula Pavanello e Diogo Sales durante manifestação na futura estação Saracura Vai-Vai, no Bixiga - Tatiana Cavalcanti/Folhapress

Não dá para escavar lugares de fundamentos (religiosos), sem mexer com os ancestrais. É o que tem aprendido a duras penas a Linha Uni, consórcio liderado pela Acciona e responsável pela construção e operação da futura Linha 6-Laranja do Metrô de São Paulo. Durante as obras na região do Bixiga a empresa descobriu vestígios do Quilombo Saracura, que funcionou no local nos séculos 19 e 20.

A descoberta foi notificada no site da emprensa em abril de 2022, mas ficou sem conhecimento da sociedade por dois meses. Até que o Guia Negro noticiou e os moradores do bairro se organizaram no Movimento Saracura Vai-Vai que há mais de um ano se reúne semanalmente em torno das pautas da preservação dessa história.

Entre as reivindicações estão a mudança de nome da Estação de Metrô, de 14 Bis para Saracura Vai-Vai; educação patrimonial para que as histórias sejam conhecidas por mais pessoas e museu com as peças encontradas na obra na própria estação ou no seu entorno.

O Mobiliza Saracura Vai-Vai é a reunião de vários movimentos que já existiam no bairro, com reforço do movimento negro. Os membros participaram, por exemplo, de forma ativa no debate do plano diretor, no qual conseguiram incluir a responsabilidade da Prefeitura de proteger as áreas quilombolas demarcadas pelo Governo Federal. “Hoje o único território quilombola em reconhecimento na área urbana de São Paulo é o Saracura, mas permite que outros também tenham esse direito no futuro”, diz Luciana Araujo, jornalista, moradora do Bixiga e integrante do Movimento Saracura Vai-Vai.

O Bixiga foi reconhecido como território de quilombo urbano, no pré e pós abolição da escravização no Brasil pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Nacional (Iphan). Ao longo do século 20 e começo do século 21, abrigou a escola de samba Vai-Vai, a maior vitoriosa do carnaval de São Paulo, que traz em seus sambas enredos e desfiles o protagonismo negro e era fundada em um terreiro, que tinham fundamentos de orixás.

A escola foi desapropriada para a construção do metrô, após uma longa disputa com parte da vizinhança que se incomodava com o som dos ensaios. Saiu da antiga sede com a promessa de outra quadra no bairro, e hoje a nova localização está embargada pela justiça e a Vai-Vai continua sem teto no local de origem. Ou seja, a luta do movimento é também pela permanência da Vai-Vai no território.

Escavações

A obra do metrô, por sua vez, deparou-se com o sítio arqueológico. “Mexeu com quem estava quieto”, como se diz no ditado popular. “Entendemos que o metrô é importante, mas precisa respeitar nossa história. A escavação não pode destruir as memórias desse território negro e queremos a musealização desse lugar”, afirma Luciana Araujo.

O Iphan também reconheceu o local como território consagrado de matriz africana. Na última sexta-feira (18/08), a Ebomi Jennifer de Xangô, que está assumindo o Ilè Asè Iyà Osun, após a morte de Pai Francisco de Oxum, esteve no local e identificou diversas peças de ágata, como prato raso e funda – usados no candomblé, além de faca e ferradura, que são símbolos do orixá Ogum.

A expectativa da A Lasca, empresa responsável pela sítio arqueológico e que trabalha junto a Acciona, era que houvesse um ritual para “liberação de território” para as escavações. Há funcionários que trabalham na obra, que consideram o lugar mal-assombrado e alguns têm medo do que pode ser encontrado por ali.

No local das escavações já foram encontradas mais de 4 mil peças. A proposição dos movimentos é que estação conte a história do local (como a Santa Cecília conta sobre o modernismo) e que acima dela haja o museu. Entre os achados estão imagens religiosas, peças de azulejos recortadas em losango e triangulo, louças, peças de vestuário e calçados (que somam cerca de 500 de diferentes tipos).

A Lasca solicitou que seja reduzida a profundidade da escavação de 6 para 3 metros, ignorando os materiais que ainda podem ser encontrados mais ao fundo. Os movimentos populares apontam que a obra continua sem mitigação dos impactos, arqueológicos e do entorno. A empresa não respondeu sobre esses pontos levantados e informa que ainda não há previsão do fim das escavações arqueológicas.

Ações

Entre as mobilizações, está o projeto de lei 1.047/2023 da deputada estadual Leci Brandão (PCdoB) que prevê a mudança de nome da futura estação para Saracura Vai-Vai. Já a Secretaria de Parcerias em Investimento (SPI), do governo de São Paulo, informa que a solicitação do movimento Saracura Vai-Vai “ainda está em avaliação”.

No caso do projeto de educação patrimonial, a previsão do movimento é que haja roteiros permanentes no bairro, demarcação por meio de placas com histórico dos pontos de vivência e referência negra, como as sedes do Movimento Negro Unificado (MNU), e formação patrimonial. “Queremos que haja política permanente de difusão desse conhecimento. Estado e concessionária precisam bancar isso”, considera Luciana Araujo.

Outro lado

A Linha Uni ainda chama, em nota, a futura estação de 14 Bis e afirma que “os processos de resgate de sítios arqueológicos irão prosseguir até o término do solo arqueológico” e garante que tanto a empresa, quanto A Lasca “estão comprometidas com os procedimentos técnicos, as normativas legais para a proteção do patrimônio cultural, o respeito e a visibilidade dos segmentos etnoculturais que configuram a identidade paulistana”.

Diferentemente do que pede o movimento, de um museu no bairro, os objetos encontrados, segundo a Linha Uni, deverão fazer parte do acervo do Centro de Arqueologia de São Paulo, vinculado ao Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura.

A empresa também não se compromete em realizar um projeto de educação patrimonial contínuo e limita-se a dizer que tem um “canal de diálogo e aprendizado junto à Diretoria de Ensino Centro-Sul para elaboração de estratégias pedagógicas voltadas para a comunidade escolar da região do Bixiga”. Por fim, a Linha Uni reforça que as obras da Linha 6-Laranja de metrô seguem o cronograma estabelecido pela Secretaria de Parcerias e Investimentos. A data prevista para conclusão do metrô não foi informada.

Passado e futuro

De acordo com relatos orais dos mais velhos do bairro, a região abrigou ainda um cemitério de pessoas escravizadas. Até o momento não há documentos ou indícios que comprovem a informação. Mas há a certeza de que há mais narrativas a serem conhecidas.

O nascimento do Bixiga é comemorado em 1 de outubro, data em 1878 em que foi colocada a pedra fundamental para a construção de um hospital na região que nunca foi concluído. Há, no entanto, registros de população na região desde 1848. O local aparecia nos mapas apenas como uma encosta e mata do Rio Saracura, assim como hoje aparece nos registros oficiais como parte da Bela Vista.

A luta do Bixiga por visibilidade é antiga, mas, tenho certeza, que chegou o momento de contá-la como se deve e, assim como o Rio Saracura, que foi tamponado cobra a sua presença quando chove, essa é uma história que não vão conseguir mais esconder e botar para debaixo da terra junto com o metrô. Viva o Bixiga Negro, viva a Saracura, viva a Vai-Vai.

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