O cantor e compositor senegalês Baaba Maal, uma das vozes mais icônicas da África contemporânea, realizou nos dias 14 e 15 de outubro, no SESC Pompeia, em São Paulo, duas apresentações que trouxeram importantes mensagens sobre as questões raciais da população africana e afrodescendente. Em seu trabalho, Baaba Maal costuma trazer canções tradicionais de comunidades africanas em um resgate de instrumentos ancestrais que dialogam com inovações eletrônicas.
Como ele mesmo relevou nesta entrevista exclusiva a Geledés, seu último disco Being, lançado em 2023, foi uma libertação de padrões anteriormente adotados em sua maneira de compor. “Não planejava fazer um disco. Estava apenas passando um tempo com alguns amigos — às vezes no estúdio, às vezes em casa — conversando sobre questões que são importantes para nós no mundo”.
Em suas viagens ao redor do globo, Maal atuou também como Embaixador da Boa Vontade da ONU, debatendo temas que vão da justiça social à desertificação na Arábia Saudita. Nesta conversa, o artista revisitou seu processo criativo, em que traz sua visão sobre o papel da música na conscientização social e política. “Para mim, como artista africano, entendo que temos o dever de nos envolver com a educação — ou melhor, com a conscientização das nossas comunidades. Mostrar o que está acontecendo. Ensinar como resistir ao que nos faz mal. Participar de todas as evoluções que ajudem o povo a recuperar sua dignidade.”
Geledés – Você mencionou certa vez que seu último álbum Being, lançado em 2023, não foi planejado como um disco, mas que nasceu de momentos compartilhados com amigos. Como é sua forma de compor?
Quando escrevi Being, não planejei fazer um disco. Estava apenas passando um tempo com alguns amigos — às vezes no estúdio, às vezes em casa — conversando sobre questões que são importantes para nós no mundo. A partir dessas conversas, começamos a colocar algumas notas, melodias, e até ritmos. E foi assim que nasceram as músicas que as pessoas ouvem hoje no disco. Mas, para mim, o Being tem outra vida, pois está ainda em transformação. Seguimos gravando, adicionando coisas, e planejamos um lançamento mais amplo ou uma continuação do projeto.
Em relação à evolução da minha escrita, acredito que não esteja ‘evoluindo’ no sentido tradicional. É mais como um retorno à minha origem ao compor de forma natural. Observo o mundo, me sento com os amigos, viajo pela minha região e deixo as músicas surgirem sem forçar nada — não componho para um álbum, mas apenas para escrever.
É assim que trabalho. Vou para o meu estúdio em casa, pego meu violão ou qualquer outro instrumento que estiver por perto, e simplesmente me sento para tocar. Esse é o meu jeito.
Aqui em São Paulo, essa jornada é sobre seguir minha ligação com o mundo — viajar, valorizar o movimento, conversar com as pessoas e trazer minha perspectiva africana para a conversa global. Durante o show no SESC falei sobre o ato de viajar. Disse isso na hora, e ainda acredito: “viajar é a melhor lição da vida.”
Geledés Sua música sempre transitou entre a tradição e o futurismo. Como é estabelecer esse diálogo entre instrumentos africanos ancestrais e a eletrônica moderna?
Quando tive a oportunidade de entrar no estúdio e trabalhar com pessoas de fora do meu ambiente — especialmente com artistas da música eletrônica — eu disse assim: ‘É disso que a África precisa.’ Porque a maioria dos instrumentos africanos são realmente lindos, mas foram pensados para um ambiente ou arranjo muito específico. Só que, quando você quer falar sobre a África, não se trata apenas das notas ou dos ritmos. É também sobre trazer todos os elementos que nos cercam— o vento, o espaço, os sons da savana. E não é possível capturar tudo isso por completo se não for usada a música eletrônica.
Por isso, eu vejo a música eletrônica como uma oportunidade para a música africana. Mas também não devemos abandonar completamente o som africano. Precisamos encontrar um equilíbrio justo entre o que tiramos da eletrônica e o que preservamos da tradição.
Mesmo quando fazemos discos mais modernos, continuamos sendo músicos africanos, representando a África em toda a sua diversidade e originalidade. E eu acho que o produtor com quem venho trabalhando ao longo deste último ano, Johan Hugo, entendeu isso profundamente — e está tentando levar essa visão para dentro da minha música.

Geledés – A canção Yeremayo Celebration homenageia os pescadores de Podor, sua cidade natal. Como suas raízes continuam a se manifestar em seu trabalho?
Yeremayo Celebration é simplesmente o som da minha comunidade, da minha família. Em toda edição do festival Blues of the River, abrimos o evento com essa celebração — e procurei trazer essa mesma atmosfera para a música Yeremayo Celebration. Isso significa que eu nunca me afasto do que sou, nunca deixo de fazer parte dessa comunidade de pescadores. Porque ela tem muito a oferecer — para a música, para a cultura. Além disso, como compartilhamos o rio Senegal com vários países — como Mauritânia, Mali e Guiné — essa comunidade também recebe muitos elementos culturais e musicais que entram no Senegal por meio desse rio.
Sempre serei o filho de um pescador — com tudo o que isso representa: respeito ao rio, envolvimento na restauração de suas partes degradadas, trabalhar com ONGs para repovoar o rio Senegal com espécies de peixes, como era antigamente. Quero envolver os jovens nesse trabalho, mostrando que tudo isso também faz parte da luta contra a degradação da terra. Mas essa luta tem que ser guiada pela música, pela cultura.
Se você quer dialogar com jovens que não têm chances na vida, e tiveram como eu ter que sair do Senegal ou deixar a África, você precisa usar a cultura. É assim que eles vão entender quais são os desafios. Por isso, é preciso manter viva a alma de um yerimaya, um filho de pescador, algo que é realmente importante.
Geledés – Quando deixou Podor, sua vila, carregou seu ritmo pelo mundo. O que buscava? E como suas viagens, inclusive ao Brasil, mudaram sua compreensão da África e de si mesmo?
Quando viajo pelo mundo, sou sempre aquele jovem — de muito tempo atrás — que aprendeu sobre a própria cultura ouvindo as narrativas das pessoas mais velhas, que me aconselhavam e diziam: ‘Se você quer representar nossa cultura, é assim que deve ser.’
Viajar também me coloca em contato com muitas outras influências. E não há como fugir disso — somos seres humanos, a gente absorve tudo isso. E quando absorvemos, começamos a pensar em como essas influências podem alimentar a música, aquela que ficou lá atrás, na origem.
Viajar é escutar as pessoas, descobrir culturas, conhecer músicos, ouvir o que eles fazem — e depois voltar e escutar o que temos na África e perguntar: ‘Onde está o ponto de encontro entre nós e eles?’ E também: ‘O que fizemos — ou deixamos de fazer — para promover os músicos africanos?’
É preciso se basear nas coisas que observamos enquanto viajantes pelo mundo. E isso tem sido algo muito positivo. Mas mesmo com todas essas influências, nunca mudei minha alma de cantor africano que canta para o mundo. Canto com elementos que ajudam o mundo a entender o que digo. E por isso estar aqui no Brasil é tão especial — porque há uma conexão real entre Brasil e África.
Quando ouço o samba, quando vejo as pessoas tocando com tantas percussões, é como estar em Dakar ouvindo os tambores do sabar (conjunto de instrumentos de percussão tradicionais do Senegal e da Gâmbia). É o mesmo som poderoso, que faz as pessoas simplesmente se levantarem e dançarem, de uma forma natural. Se você não viaja, não consegue enxergar isso. Ouvir é uma coisa. Mas estar ali, perto das pessoas que tocam, sentir a energia e ver a atitude — isso é fundamental.
Geledés- Sua arte sempre foi um espaço de resistência. O que espera que o público entenda sobre sua música em relação à condição humana?
Há dois anos, tive a oportunidade de ser convidado para falar na Assembleia Geral da ONU, em Nova York — e fui com meu violão. Não fui apenas como embaixador da Boa Vontade das Nações Unidas para discursar, mas também para tocar.
Porque, através da música, conseguimos expressar tudo aquilo pelo qual as pessoas estão lutando: justiça, escuta dos jovens e dos seus sonhos, a situação das mulheres. Falamos sobre isso no ano passado com os embaixadores mais antigos. E acredito que a música tem esse poder — ela abre os corações, inclusive os dos líderes.
Com a música, você pode dizer: ‘Olhem o que vocês estão fazendo. Sim, esse é o caminho certo, se queremos encontrar soluções.’ Estamos aqui para ajudar. Porque, quando esses temas aparecem na televisão, nos jornais, nas grandes falas políticas, muitas vezes ficam distantes. Mas os músicos e artistas têm a capacidade de transformar essas palavras em algo vivo, próximo do povo.
As pessoas precisam saber que, na Assembleia Geral, estão falando sobre elas, sobre a realidade delas, sobre o que elas esperam ver acontecer no mundo. E é isso que sigo fazendo até hoje. Porque, para mim, como artista africano, temos o dever de nos envolver com a educação — ou melhor, com a conscientização das nossas comunidades. Mostrar o que está acontecendo. Ensinar como resistir ao que nos faz mal. Participar de todas as evoluções que ajudem o povo a recuperar sua dignidade. Porque toda pessoa tem o direito à sua dignidade. E esse, pra mim, é o papel da música — desde muito antes de eu nascer. E continua sendo até hoje. Claro, podemos buscar visibilidade, reconhecimento na indústria, no exterior. Mas lá no continente, no chão de onde viemos, temos uma grande responsabilidade. As pessoas estão nos ouvindo. E a música é uma forma poderosa de falar com elas sobre o que realmente importa.
Geledés- Você ajudou a moldar a trilha do filme Black Panther. Qual o legado mais vital desse símbolo de resiliência?
Tenho certeza, aliás muita certeza, de que ainda temos muito a fazer para que as pessoas escutem mais, escutem de verdade, e entendam que somos todos iguais. O futuro deste planeta, da humanidade, dos seres humanos, temos que construí-lo juntos.
E precisamos dar mais importância às pessoas que costumamos achar que estão longe das grandes decisões — mesmo no campo da cultura, do cinema, da música, das artes. Dou apenas um exemplo. Um amigo me disse algo que é muito verdadeiro: talvez alguns dos povos indígenas — aqueles que muitos acreditam que não têm nada a contribuir com a grande cultura ou indústria criativa — talvez eles tenham a chave para a sobrevivência da humanidade.
Porque eles não mudaram tanto em razão dos negócios, do mercado. Eles continuam seres humanos que vivem com o que têm. E justamente por isso, talvez estejam mais próximos das soluções para a crise climática, para a degradação da terra, para a reconexão com o planeta Terra. Porque essa é a vida deles. Eles vivem em harmonia com a natureza. E é a partir disso que nasce a música deles, que nasce o canto.
Penso que Pantera Negra foi algo realmente excepcional para muitas comunidades — não só para a comunidade negra, africana ou afro-americana. Muitas outras pessoas se reconheceram. Porque, às vezes, a indústria da música ou do cinema se fecha demais em si mesma. Não se abre para tudo o que poderia entrar.
A menos que existam pessoas dentro da própria indústria que digam: ‘Sim, se quisermos que isso aqui continue vivo, precisamos buscar ideias novas — sobre o papel do ser humano no mundo.’”

Geledés – Como Embaixador da Boa Vontade da ONU, qual seria sua mensagem global às vésperas da COP30?
Minha mensagem para o mundo, ao olharmos para o que acontecerá no Brasil, é que já tivemos muitas COPs. Talvez, sim, algumas tenham trazido mudanças. Outras, nem tanto — às vezes parecem apenas encontros.
Mas se queremos resultados concretos no trabalho que estamos fazendo, não podemos nos cansar. Não podemos perder o ânimo. Desde o início, sabemos que não é fácil — e que não vai ser fácil.
É preciso levantar a voz, falar, e continuar falando. E nesta edição, acho que tanto do meu ponto de vista quanto do de Ricky Kej — que também é Embaixador da Boa Vontade da ONU, vindo da Índia — e da Amália, outra embaixadora, fizemos um trabalho incrível na Arábia Saudita.
Mesmo que não estejamos fisicamente nesta COP no Brasil, as pessoas podem ver o que fizemos: gravamos músicas, produzimos um documentário que agora foi lançado pela UNCCD. Mas, mais do que isso, fizemos ações concretas.
Fomos até Al-Ula, convidados por uma iniciativa saudita de combate à desertificação. Lá, plantamos árvores — como um gesto simbólico, mas real. E acredito que outros países poderiam seguir esse exemplo, como fez a Arábia Saudita: dar mais espaço para os embaixadores mostrarem na prática aquilo que defendem. O resto do mundo vai seguir quando vir ações verdadeiras.
Acredito também que muitos estão esperando que um país como o Brasil faça algo excepcional. Talvez eu não conheça o Brasil profundamente, mas tudo o que se fala sobre suas florestas, sobre as terras degradadas, sobre o ressecamento de partes da Amazônia são elementos que tornam o Brasil um exemplo poderoso a ser mostrado ao mundo.
As pessoas deveriam conhecer muito mais o que acontece no Brasil — porque esse exemplo pode realmente ajudar a humanidade a entender o que fazer nos seus próprios países, nas suas regiões, nos seus territórios.