Por Adriano Senkevics,
Cor é uma construção social. É isso que afirmam os/as teóricos/as das relações raciais, o movimento negro e qualquer um que entenda que, assim como gênero, raça é uma mentira bem contada. Ao falar de raça, usualmente nos referimos à população negra, quer na nomenclatura demográfica de pretos e pardos, quer na referência histórico-cultural do afrodescendente. Também pudera, trata-se do lado oprimido da relação. E justamente por ser uma relação, envolve pelo menos mais um lado. Neste texto, nosso foco será o/a branco/a.
A rigor, ninguém é branco no Brasil. Em termos raciais, o caucasiano de origem europeia pode até ser que faça algum sentido lá na Europa – e ainda pouco, em virtude das misturas – mas aqui é uma ilusão. Do ponto de vista genético, já está mais do que claro que raças não existem. É um conceito equivocado, cuja gênese remonta à sustentação de ideologias racistas que viam na eugenia uma forma de garantir privilégios de um determinado grupo. Taí o que sustentou por séculos a escravidão, inspirou o holocausto, ocasionou o regime do apartheid e serve de pano de fundo a muitos outros conflitos étnicos.
E mesmo se nós, detentores de pele clara e fenótipo branco, dermos uma passada lá no Norte, eles próprios não nos considerarão brancos ou mesmo ocidentais. Ainda bem! Somos, sei lá, latinos. Independentemente da raça atribuída a nós pelos euro-americanos ou de nosso material genético contido nas mitocôndrias e cromossomo Y, a discussão racial no Brasil suscita um debate social e cultural o qual remete à nossa história, à nossa própria sociedade e, portanto, diz respeito a brancos, negros e qualquer outro grupo que componha essa aquarela de cores, raças e etnias.
O Brasil é um país racista. Isso é inegável. Seja para discutir os homicídios nas periferias, o direito à Educação ou os símbolos culturais, a raça atravessa variadas dimensões das relações sociais mostrando que hierarquias, privilégios e opressões ainda se fazem presentes. Já os Estados Unidos são uma nação racista e segregada, fruto de seu apartheid que imperou até meio século atrás. Segregados, como a África do Sul, nós nunca fomos, o que não quer dizer que não tenham existido políticas racistas ou, mais, um arranjo da sociedade como um todo em perpetuar uma condição subalterna aos negros.
Assim, a outra face da moeda foi prover aos aqui identificados como brancos com as regalias de um legado que nos envergonha. Reitero: a classificação racial é subjetiva e todo mundo que se considera branco ou negro está partindo de parâmetros difíceis de delimitar. Essa subjetividade, ao invés de anular o debate, o reforça. Ninguém vai lhe pedir um exame de DNA para decidir acerca da sua contratação em um emprego ou montar sua árvore genealógica para averiguar se vale a pena ou não te enquadrar numa rua escura. Nós nos olhamos de forma subjetiva e somos olhados de modo igualmente subjetivo. O problema é que, além da mera diversidade, tais olhares são influenciados por concepções preconceituosas que derivam das posições que brancos e negros ocupam distintamente na sociedade.
Esse privilégio forneceu aos brancos mais do que um leque desproporcionalmente maior de oportunidades – o que, é óbvio, está atravessado por outros marcadores sociais dentre gênero, classe e origem – como também lhes deu a prerrogativa de não precisarem ser nomeados. Conforme afirma Bob Pease (2010), as pessoas brancas enxergam a si mesmas como indivíduose não como detentoras de uma racialidade: seus ganhos seriam fruto de um esforço individual, sem que houvesse relação com questões raciais. Daí deriva a expressão “pessoa de cor” para designar os outros. Ué, brancos também não possuem cor?
Da mesma forma que a figura do negro remete a certos estereótipos, geralmente negativos e associados à baixa qualificação, malandragem, erotização, criminalidade; o arquétipo de um branco também está enviesado. Pense num médico, num juiz, num político, num advogado, num cientista. Em que nós pensamos? Além de visualizarmos um homem – e a escolha do gênero das palavras foi proposital, pois ao se pretender neutra (“um político”) já é sexista – este provavelmente será um homem branco. Ou não?
Segundo estudo de Luciana Alves(2012), brancos são usualmente associados a posições de prestígio, trabalho, honestidade, inteligência. Não são apenas atributos que faltam para caracterizar pessoas negras, que mesmo esforçando-se tendem a ser subestimadas o tempo todo, são qualidades conferidas à população branca em função dessa estrutura racista. É disso que nasce a tendência de branqueamento que caracteriza indivíduos bem sucedidos: o caso da cantora Anitta é emblemático e circulou nos meios sociais – de garota negra de origem humilde, ela gradualmente se adequou à estética branca. Trata-se de um círculo vicioso, pois o que é branco tende a ser valorizado e o que é valorizado tende a ser branqueado.
Por isso, não me assusta, embora me deprima, as reações ignorantes ao Dia da Consciência Negra. Sinceramente, não gostaria que houvesse um “dia” para isso – sua simples existência já denota uma desigualdade. Todavia, o que mais incomoda é como a “inconsciência branca” é poderosa ao minimizar, negligenciar ou, quando não, ridicularizar uma data cuja função é chamar atenção para a convivência das opressões raciais no Brasil contemporâneo. Esse deboche nos mostra o quanto não amadurecemos e que os brancos são ainda incapazes de problematizar seus próprios privilégios. Enoja-me a proposição de um White Power ou “Consciência Branca”.
Na condição de branco, lamento muitíssimo pela escravidão. Não me sinto, e nem deveria me sentir, culpado por ela e tampouco me identifico com os brancos que a perpetuaram. Porém, as consequências de relações racialmente desiguais que nasceram no passado e se mantêm até hoje, tanto pelo nosso legado quanto por mecanismos outros, são maiores que as minhas intenções. Carrego essa marca na minha pele clara assim como um indivíduo negro traz um histórico que lhe é próprio. Cabe a nós, brancos, reconhecermos nossa racialidade; não para reivindicá-la, mas para não perder de vista que, conscientes ou não, somos parte de um jogo cujos dados não param de ser lançados.
Fonte: Ensaios de Gênero