por Sérgio Marins
Há duas cenas no filme AMISTAD que aprisiona minha reflexão. A primeira logo no início, quando homens e mulheres escravizados se amontoam no navio negreiro e disputam os restos de comida jogados pela tripulação. Uma imagem da condição humana subjugada no mais profundo abismo da existência, reduzida á condição análoga a um animal.
A outra cena é no final do filme, quando após a liberdade conquistada de forma brilhante pelo advogado Roger Baldwin, os homens livres vão em busca de sua terra natal, e ela já não existe mais, como deixaram na partida. Portanto, homens, agora libertos, tem pela frente como sua nova matrix de condicionamento, a própria trajetória de escravidão e desumanização, sendo a partir deste “locus”, que o dialogo com a vida seria reconstruído, mas o filme acaba por aí.
Não é o nosso caso, após a escravidão, o paradigma da casa grande senzala, a dialética entre senhor x escravo se amalgama nas relações sociais, no imaginário coletivo e individual, fixando lugares e falas pré-determinadas.
Penso que a superação do racismo no Brasil, entre outras transformações, passa pela superação desta construção social imaginária e tão real, posto os lugares ocupados pelos afrodescendentes e a resistência da elite local em manter a casa grande apenas como local de prestação de serviços e servidões de todos os tipos.
Mas a mudança não ocorrerá apenas por nossa vontade, por pressão do movimento organizado, ou o país em crescimento econômico e uma nova postura no cenário mundial. Necessita de um outro paradigma. Não se justifica manter quase da metade da população entre pretos e pardos na invisibilidade e nas péssimas condições estruturais, afinal não somos racistas, diz a elite nacional.
Mas, qual será o novo ponto de partida para reconstrução amistosa das relações etnoracial que se construirá neste país.
Nos oferecem como possibilidade, a amizade protagonizada na novela da rede globo “fina estampa”, onde a criança branca e negra, cada um em seu lugar, é claro, vivem tranquilamente. Onde o jovem mestiço, filho de mãe negra, delinquente, revoltado com sua condição social, se atola na marginalidade, preste a ser salvo por uma mulher branca e rica. Aquela coisa da sinhazinha que ama o escravo rebelde, que acaba no tronco, pela ousadia do amor proibido.
Penso que não, casa grande e a senzala precisam ser destruídas em nossas mentes, dando espaço a um novo imaginário social, onde o ser possa interlocutar com suas diversas origens, através de um dialogo aberto sobre identidades etnoracial, porém resguardando o “feeling” de cada um sobre seu pertencimento étnico. Não vamos longe, as famílias que descendem de europeus no sul do país, carregam seu orgulho em serem brasileiros, porém não se afastam das lembranças de seus antepassados, vivem de forma digna e possuem uma grande intervenção na política e nos interesses econômicos daquela região.
O Brasil necessita da livre circulação e ascenção dos afrodescentes, da explosão de suas criatividade, ousadia, coragem e determinação. Trata-se de uma reserva não explorada, que a elite insiste em utilizar dentro do modelo de servidão do passado. As ações afirmativas, entre elas as cotas, já demonstraram ao longo de dez anos sua eficácia, porém nós afrodescendentes e os brancos, que quiserem se juntar á nos, temos que fazer surgir um novo ponto de partida, sem escravos nem senhores, mas com homens e mulheres livres, experimentando a plenitude da condição humana.
Isto inclui uma vigília constante em face do Estado e seus agentes, que historicamente e por um grande equivoco, aos arrepios da tradição democrática substituiu o mando dos senhores dos escravos, incorporando toda a tradição de casa grande senzala.