Sete histórias de quem perdeu o sustento e a bolsa de pós-graduação nos cortes da educação

‘Não dá para continuar sem a bolsa. É o meu salário’, afirma pesquisadora; Capes bloqueou mais de 3 mil bolsas e não descarta novos cortes

Por André de Souza, Guilherme Caetano, Ana Paula Blower, Renato Grandelle e Luciano Ferreira, Do O Globo

Selfie de Valdemir Ferreira Júnior, homem negro de cabelo curto e pouca barba, utilizando camiseta azul escura com estampa em dourado.
Valdemir Ferreira Júnior, aprovado no mestrado do Programa de Psiquiatria e Psicologia Médica da Unifesp Foto: acervo pessoal

 

BRASÍLIA, SÃO PAULO e RIO — Um dia após surpreender as universidades federais com o bloqueio de bolsas de pós-graduação , o presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes ), Anderson Ribeiro Correia, minimizou o alcance da medida, dizendo que elas representam menos de 2% do total e estavam ociosas, ou seja, sem bolsistas cadastrados.

Correia afirmou que foram bloqueadas 3.474 bolsas das “cerca de 200 mil” que a Capes possui no Brasil e no exterior, e que elas representariam um gasto de R$ 50 milhões em 2019.

Em um discurso alinhado com o do Ministério da Educação, ao qual a Capes é subordinada, Correia afirmou que a medida poderá ser revertida no futuro caso a economia brasileira melhore.

Além dos 3.474 bloqueios, outras 1.324 bolsas ociosas foram suspensas para análise, mas serão desbloqueadas ainda nesta semana, segundo o presidente da Capes, porque pertencem a programas de excelência.

— Programas nota 6 e 7, que são classificados como de excelência internacional no país, serão preservados desse bloqueio — disse Correia.

O presidente da Capes também afirmou que pode haver um novo bloqueio de vagas que ficarão ociosas assim que os atuais bolsistas terminarem seus programas, mas que essas ações “serão tratadas detalhadamente e esclarecidas no prazo devido”.

Questionado sobre bolsas que estavam ociosas, mas para as quais já houve processo de seleção, Correia disse que situações assim poderão ser analisadas caso a caso. Mas destacou que não é comum haver preenchimento no meio do semestre, uma vez que isso costuma ocorrer em fevereiro e agosto.

‘Cenário devastador’

As instituições que perderam bolsas, e que se reuniram nesta quinta-feira com o presidente da Capes, criticaram a medida. Em entrevista ao GLOBO, Leila Rodrigues da Silva, pró-reitora de pós-graduação e pesquisa da UFRJ , disse que o cenário é “devastador”.

— É um desmonte de décadas de construção de um sistema sofisticado e de excelência. Reduzir o número de bolsas é reduzir o número de pesquisadores no país. É um prejuízo imensurável.

As bolsas consideradas “não utilizadas” pela Capes, ela lembra, não representam gastos para o governo — enquanto não são atribuídas a um bolsista, nenhum pagamento é realizado.

— Se havia o projeto de cortar para economizar futuramente, o que já é uma lógica muito ruim, isso poderia ao menos ter sido planejado. Temos alunos que vêm de outros estados e que já estavam em processo de seleção e, por isso, haviam programado a vida para a pesquisa com bolsa nos próximos anos. Do ponto de vista do indivíduo, é muito triste. Sob a ótica da pesquisa, é um desastre.

Segundo a presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), Flávia Calé, o alcance do corte nas bolsas ainda está longe de ser mensurado. Ela afirma que a Capes ainda não conseguiu definir quais seriam as vagas em situação “ociosa”, uma vez que vários tipos de bolsas estão nessa categoria. Caso todas sejam perdidas, ela afirma que haveria déficit de mão-de-obra e interrupção de diversos projetos desenvolvidos em universidades.

— Noventa por cento da nossa produção científica se dá na pós-graduação, e esses cortes estão sendo usados como chantagem, como barganha para a aprovação da reforma da previdência.

Selfie de Bruno Veber, homem branco loiro de barba, em pé em um laboratório, vestindo jaleco branco.
Bruno Veber, aprovado para doutorado em genética na UFRGS Foto: Acervo pessoal

 

‘Estou pensando em não me matricular’

Bruno Veber, aprovado para doutorado em genética na UFRGS

“Não sei se serei afetado, mas, provavelmente, sim. Isso me deixa muito inseguro. Sem bolsa, não conseguirei pagar as minhas contas, aluguel. Enquanto não me matriculo no doutorado — porque vou defender o meu mestrado em ciências fisiológicas na Furg no fim do mês — vendo brownie na porta do restaurante universitário para me manter aqui em Porto Alegre. Estou pensando em não me matricular e tentar um emprego que não seja de cientista, algo completamente diferente do que venho fazendo todos esses anos. Já mandei currículo para o Sesc, para escolas particulares, até já procurei pelo secretário estadual de educação. Sem a bolsa é impossível fazer o doutorado, porque não dá para trabalhar oito horas em um lugar e passar outras oito dentro de um laboratório.

Fico pensando: como continuar na ciência? Até quando o pessoal que recebe a bolsa terá o benefício? Como cientista, é extremamente desanimador. Não sei qual vai ser a nossa motivação daqui para frente para continuar fazendo pesquisa no Brasil. E o futuro de um país está ligado à Ciência.”

Relbson de Matos Costa, homem pardo vestindo camiseta azul, sentado na frente de um notebook sobre uma escrivaninha.
Relbson de Matos Costa, 27, aluno de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da UFMG Foto: acervo pessoal

‘Já mandei currículo para pelo menos 90 lugares’

Relbson de Matos Costa, aluno de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da UFMG

“Fui aprovado para o mestrado no ano passado e, em abril, pedi informações no programa de pós-graduação sobre o que deveria fazer para conseguir uma bolsa. Cumpri todos os requisitos, preenchi a documentação, assinei um termo de responsabilidade, mas, na semana passada, a secretaria do curso me informou de que o sistema de bolsas estava fechado e eu não receberia o benefício. É pouco dinheiro, apenas R$ 1.500, mas fundamental para pagar o aluguel do apartamento em que moro com meu companheiro.

Desde fevereiro, mandei meu currículo para pelo menos 90 lugares. Mas, além da crise econômica, a iniciativa privada não gosta de contratar estudantes de pós-graduação, porque imaginam que teremos pouco tempo disponível e que usaremos nossa formação acadêmica para buscar outro emprego, portanto não valeria a pena investir em nosso treinamento. Mas não quero desistir da universidade.

Segundo meus cálculos, minhas contas entram no vermelho em junho. Então, vou começar a procurar emprego em outras áreas. Já dirigi Uber e fui costureiro. Também posso ser assistente a paciente domiciliar.”

Lucas Lopes- homem pardo de cabelo curto e pouca barba, vestindo camiseta lisa preta- sentado apoiando os braços em uma mesa de vidro e com as mãos em frente a boca.
O estudante de mestrado Lucas Lopes entrou para o doutorado, mas ainda não sabe se receberá bolsa de estudos; ele está cogitando largar o curso Foto: Bruno Kaiuca / Agência O Globo

 

‘Vou ter que repensar a minha vida profissional’

Lucas Lopes da Costa, aluno de doutorado do Programa de Engenharia Metalúrgica e de Materiais da Coppe/UFRJ

“Sou de Campos dos Goytacazes e me mudei para o Rio em março, porque gostaria de participar de uma linha de pesquisas sobre vigas aplicadas ao pré-sal. Como não tenho parentes na cidade, estou na casa de um amigo. O plano era ficar com ele até ganhar minha bolsa, o que deveria acontecer em pouco tempo, porque eu era o primeiro em uma lista de espera — faltava apenas um doutorando defender sua tese e concluir seu curso, e aí o benefício passaria para mim. Perguntava constantemente ao meu orientador se havia novidades, mas, até agora, não havia qualquer definição.

Como não tenho dinheiro, interrompi minha busca por um apartamento, e não me sinto à vontade de tirar a privacidade de meu amigo. Também planejava me casar em setembro. Minha noiva mora no interior do estado e trabalha com serviço social. Planejávamos sua mudança para cá e ela procuraria um novo emprego em sua área, mas não conseguiríamos manter uma casa apenas com o salário dela. Então, também não sei mais se vou casar.

Em Campos há poucas oportunidades em engenharia. Sinceramente não sei o que vou fazer, teria de inventar alguma coisa, repensar a minha vida profissional.”

À direita, Eugênio Matiolli- homem branco de cabelo e barba curta, vestindo camiseta lilás- em pé ao lado de um senhor - de óculos escuro, sentado, utilizando camiseta estampada- á direita uma mulher- branca de cabelo longo lisos, vestindo um vestido cinza- segurando uma placa de honra.
À direita, Eugênio Matiolli, aprovado para o doutorado da Universidade de Lyon, na França, com bolsa da Capes Foto: Acervo pessoal

 

‘Não sei se embarco para o doutorado no exterior’

Eugênio Mattioli, doutorando em Ética e Filosofia Política pela USP e aprovado para um estágio de pesquisa em Lyon, na França, com bolsa da Capes

“Essa incerteza e essas ações súbitas tomadas por parte do MEC e pela Capes causam muita insegurança no trabalho da pesquisa. Além de afetar o andamento da pesquisa quando você remove o pesquisador brasileiro de debate internacional em andamento. É uma sensação de profunda angústia e tristeza. Estou há dez anos trabalhando para construir essa pesquisa.

Sem a Capes, eu não consigo viajar.

O que dificulta mensurar o impacto dos cortes é que as pesquisas são processos longos, construídos durante grandes períodos de tempo. Por isso, o ganho do esforço acadêmico não é sentido agora.

A construção do indivíduo dedicado à ciência ou à docência no Brasil tem se aproximado cada vez mais da imagem do apaixonado, porque todas as outras razões não compensam. A carreira é mal remunerada, é maltratada, não tem amparo, não tem financiamento, não tem valorização. Só resta a paixão. É mais um prego no caixão da pesquisa científica no Brasil.”

Sheina Koffler, mulher asiática, vestindo camiseta lisa roxa, fazendo pose em um local alto.
Sheina Koffler, doutora em Biociências pela USP. Sua bolsa de pós-doutorado havia sido aprovada no mês passado, mas agora foi cancelada. Foto: arquivo pessoal

 

‘Não dá para continuar sem a bolsa. Ela é o meu salário’

Sheina Koffler, doutora em Biociências pela USP. Sua bolsa de pós-doutorado havia sido aprovada no mês passado, mas agora foi cancelada

“Minha pesquisa de pós-doutorado investigaria o efeito da urbanização sobre abelhas nativas. Isso é essencial para a conservação das abelhas, que são as principais polinizadores da nossa flora e têm um efeito muito grande na sobrevivência das plantas e na produção de alimentos. Além disso, o projeto seria feito com ciência cidadã, em parceria com a sociedade.

Na minha área, estima-se que o efeito da polinização na produção de alimentos gere um ganho de R$ 43 bilhões por ano para o Brasil, mas isso pode diminuir com a perda dos polinizadores. E esses são dados de um relatório da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos.

Como esse corte me afeta? Não vou poder dar prosseguimento a essa pesquisa, pois dependo da bolsa para me sustentar. Ela é o meu salário, meu jeito de me manter. Eu havia cancelado uma outra bolsa (técnica, de menor valor) para pegar essa, pois não podemos sobrepor as bolsas, e agora estou tentando reavê-la, para continuar recebendo. Terei que procurar outra coisa para fazer ou tentar outras bolsas de pós-doutorado.”

Selfie de Valdemir Ferreira Júnior, homem negro de cabelo curto, sorrindo na foto
Valdemir Ferreira Júnior, aprovado no mestrado do Programa de Psiquiatria e Psicologia Médica da Unifesp Foto: Acervo pessoal

 

‘Não tenho como manter um emprego paralelo que me sustente’

Valdemir Ferreira Júnior, aprovado no mestrado do Programa de Psiquiatria e Psicologia Médica da Unifesp

“Meu projeto investiga a efetividade do Proerd (Programa Educacional de Resistência às drogas e violência) na prevenção ao uso de drogas e do bullying escolar. Os custos da pesquisa têm financiamento da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), recursos que são integralmente destinados às despesas acadêmicas.

Sem a bolsa, não tenho como me manter em São Paulo e prosseguir com a pesquisa. É triste ter o recurso para arcar com os custos de pesquisa, mas não ter a bolsa que auxilia na permanência. Como são 30 escolas e 3800 alunos participando da pesquisa, eu não tenho tempo para manter um emprego paralelo que me sustente. Passo o dia coletando dados nas escolas. Meu projeto exige dedicação exclusiva.”

Juliana Doretto, mulher branca de cabelo curto, usando óculos de grau e vestido estampado colorido, sentada durante uma entrevista.
Juliana Doretto havia conquistado vaga para pós-doutorado em Educação na ESPM Foto: Arquivo pessoal

 

‘Dependemos da continuidade dos investimentos para seguirmos na carreira’

Juliana Doretto havia conquistado vaga para pós-doutorado em Comunicação na ESPM

“É preciso do financiamento estatal, porque sem ele não haverá o investimento vindo do setor privado como o governo acredita que vá acontecer. Isso porque as empresas não vão investir em pesquisa científica. É uma falácia do governo essa questão das vagas ociosas, porque as vagas estão, na verdade, esperando a conclusão de processos seletivos, como ocorreu no meu caso. Eu já havia sido aprovada, mas optei por entrar apenas em agosto, quando vi que a minha bolsa foi suspensa. O que ocorrerá é uma redução drástica no número de bolsas. Se uma bolsa se fecha, se oferece menos bolsas para os programas. Isso significa uma interrupção na carreira acadêmica, porque nós somos pesquisadores e dependemos da continuidade desses investimentos para prosseguirmos a nossa carreira.”

 

 

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