‘Sem questões filosóficas, não teríamos computadores’, afirma Catarina Novaes

Para filósofa e professora da Universidade Livre de Amsterdã, governo Bolsonaro critica a disciplina por temer a autonomia intelectual

Por Dimitrius Dantas, do Época

Catarina Dutilh Novaes vê na filosofia uma peça central no avanço da ciência e no desenvolvimento econômico. Foto retirada do site Revista Época 

1. O ministro Abraham Weintraub (Educação) e o presidente Jair Bolsonaro pretendem “descentralizar” recursos de filosofia e sociologia para áreas que deem “retorno imediato” ao contribuinte, como veterinária, engenharia e medicina. Isso faz sentido?

Moro há 20 anos na Holanda, que é um dos países mais prósperos da Europa e do mundo. Aqui, todos os alunos de nível universitário seguem alguns cursos de filosofia obrigatórios. Todos. Os bacharelados em engenharia são oferecidos em universidades técnicas ( sem cursos de humanas ), como em Eindhoven, mas mesmo nelas há um departamento de filosofia.

2. A que a senhora atribui esse tipo de discurso vindo do governo, que afirma que a filosofia não tem tanta importância imediata?

Por que Bolsonaro está com medo da filosofia? Porque ela incentiva a autonomia intelectual. Existe também a narrativa de associar a filosofia — e a sociologia — ao que é considerado abjeto por ele, como ideologia de gênero. Não se trata apenas da inutilidade da filosofia, mas da visão de que ela é subversiva.

3. Qual a importância desse tipo de formação mesmo para estudantes de exatas?

É uma formação vista como essencial. Eles serão melhores médicos, melhores engenheiros, melhores veterinários com uma formação básica em filosofia. Ou seja, mesmo tomando o ponto de vista do governo de que o que importa são esses cursos mais utilitaristas, a filosofia é essencial. E a presença da filosofia é importante também para abordar as questões éticas que se colocam cada vez mais com as novas tecnologias.

4. Quais, por exemplo?

Um exemplo é a agricultura. A melhor universidade de agronomia do mundo fica aqui na Holanda, a Universidade de Wageningen. Como todas as outras, ela também tem um departamento de filosofia. Os holandeses são pragmáticos. Eles não fazem isso porque gostam de ficar contemplando questões difíceis e abstratas. Eles sabem da importância de questionamentos éticos e reflexões sobre a própria base do conhecimento para a formação em todas as áreas. Na agricultura, por exemplo, existem as modificações genéticas, de onde surgem questões éticas inevitáveis. Que isso tudo tenha de ser discutido de maneira filosófica não está em questão nas universidades holandesas.

5. A filosofia é subversiva? Alguns integrantes do governo atribuem às faculdades de filosofia a responsabilidade de formação de esquerdistas.

Também não é verdade. Comecei minha carreira trabalhando com filosofia medieval europeia, que era cristã e totalmente ligada à religião. Historicamente, a filosofia é muito mais ligada à religião que o contrário, e filosofia da religião é um campo muito ativo.

6. Mas aqui no Brasil, pelo menos, algumas pessoas consideram que a filosofia é uma disciplina menos importante, que não gera mesmo progresso. Por quê?

No Brasil, assim como em outros países, os filósofos nem sempre fizeram sua parte. Não estamos dialogando suficientemente com a sociedade de modo geral, estamos muito presos aos jargões acadêmicos. Fica difícil transmitir para fora do mundinho da filosofia sua importância. Em geral, as pessoas não têm a mais vaga ideia do que é filosofia. Para mim, ela é o ponto em que todas as disciplinas se encontram.

7. Qual a importância da filosofia, então?

Existem perguntas filosóficas típicas que levaram a progressos enormes, como “O que é o tempo?”. Parece uma questão simples, mas pergunte isso para alguém. Qualquer um terá dificuldade em explicar exatamente o que é o tempo. Mas isso gerou, na física, desdobramentos como a Teoria da Relatividade. É bom lembrar que a física era chamada de filosofia natural; era literalmente esse seu nome até o século XIX. Atualmente, os algoritmos ou os carros autônomos que estão começando a ser produzidos, por exemplo, levantam questões filosóficas. São colocadas questões éticas que são fundamentais na filosofia: em casos de acidente inevitável, os carros devem tentar salvar o pedestre ou a pessoa que está dentro do carro? São todas questões éticas difíceis, mas são importantes e são questões para o filósofo.

8. A filosofia também é responsável por progresso prático?

Sem questões filosóficas, não teríamos computadores. O desenvolvimento dos computadores atuais iniciou-se com um movimento filosófico que existia dentro da matemática na segunda metade do século XIX e estava interessado em questões sobre os fundamentos da matemática. No século XIX, em um dado momento, houve uma crise dentro da matemática sobre seus próprios fundamentos. Nesse momento, surgiram questões como “O que são os números?”. Esse movimento dentro da matemática em que essas perguntas foram levantadas chegou, na década de 30, a Alan Turing. A “máquina de Turing”, que ele criou em resposta ao “problema da decisão” de Hilbert e que deu origem a todos os computadores de hoje, não era uma máquina de verdade, mas uma construção teórica, de lógica. Ninguém poderia ter previsto que aqueles matemáticos discutindo questões etéreas sobre os fundamentos da matemática poderiam ter esse impacto prático. O que seria a vida humana atual sem os computadores? Esses desdobramentos vieram de um programa de pesquisa extremamente teórico.

9. Qual a necessidade, então, da independência da filosofia em relação a outras disciplinas?

A filosofia é questionadora, ela questiona o óbvio. São questões que outras áreas não podem levantar. Um biólogo, em uma pesquisa específica sobre células, não tem tempo para ficar contemplando a pergunta sobre o que é a vida; ele tem de fazer experimentos no laboratório. O filósofo da biologia, por sua vez, levanta perguntas fundamentais, como o próprio conceito de vida. Então, a filosofia tem de questionar o que é visto como óbvio pela maioria. Claro que, politicamente falando, isso pode ser perigoso para quem está no poder. Um governo com tendências totalitárias não quer ter pessoas contestadoras. Em regimes fascistas, no regime comunista da URSS e também em países atualmente com tendências totalitárias, como a Hungria, uma das primeiras medidas tomadas é tentar suprimir a filosofia. Isso também se aplica à sociologia, à antropologia, à história, que incentivam uma postura contestadora.

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