Sexo com camisinha continuará essencial, mesmo que se descubra cura da aids

Por Conceição Lemes

 

1980. Primeiro caso da doença  no Brasil,  em São Paulo. É classificado como aids somente dois anos depois.

2010. Estimativas do Ministério da Saúde indicam que existem hoje no Brasil cerca de 630 mil pessoas vivendo com o HIV, o vírus da aids.  De 1980 a junho de 2010, os casos acumulados de aids mesmo (HIV-positivos que desenvolveram os sintomas da doença) somam 592.914. O número de óbitos, 229.222.

A aids, todos sabem, ainda não tem cura. Porém, a combinação de vários medicamentos antirretrovirais  e  o seu fornecimento  gratuito deles a todos os pacientes com aids  mudaram radicalmente o desfecho dessa história. Até 1996, o diagnóstico de infecção pelo HIV equivalia praticamente à sentença de morte. De lá para cá, com a progressiva descoberta  de novas drogas,  a infecção foi se tornando mais e mais uma doença crônica.

“Hoje, quando atendo um paciente recém-diagnosticado, que mora no Brasil e tem adesão ao tratamento, eu posso lhe dizer  que ele vai sobreviver ao HIV”, conta ao Viomundo o infectologista Dirceu Greco.  “Quem viveu ou vive  situações de risco para aids, deve fazer o teste para saber está infectado. Se positivo, se tratar. Certamente vai sobreviver ao HIV também. ”

Greco  atua na área de aids desde meados da década de 1980. Foi um dos fundadores do primeiro Serviço de Avaliação de Imunodeficiências do Hospital das Clínicas de Minas Gerais, especializado no tratamento da doença, em 1985. Participa da Comissão Nacional de DST e Aids (Cnaids) –  a mais importante instância consultiva do Ministério da Saúde (MS)  sobre o tema –,  criada em 1986. Professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é, desde junho de 2010, diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do MS.

Confira a entrevista que ele concedeu a  esta repórter.

Viomundo — Diferentes pesquisas mostra, que o brasileiro sabe que o uso da camisinha previne a infecção pelo HIV.  Diferentes pesquisas mostram também que boa parte dos jovens não utiliza a camisinha em todas as relações sexuais. Como transformar o conhecimento em hábito?

Dirceu Greco –   Conhecimento nem sempre muda comportamento.  Isso acontece não apenas com HIV/aids, mas com tudo na vida, do cigarro ao cinto de segurança.

Essa distância entre conhecimento e prática está presente em todas as faixas etárias, em todas as classes sociais. As pessoas têm em relação ao sexo um comportamento que, felizmente, não é mecânico. Não é porque existe preservativo que se vai usar. O processo da sexualidade é muito mais elaborado.

Pesquisa feita pelo Ministério da Saúde em 2008 revela que 61% dos jovens utilizam preservativo na primeira relação sexual e 30,7% usam em todas as relações com parceiros fixos. Só que  qualquer pesquisa feita com jovens mostra que 99% sabem como “pega” e “não pega” o HIV e que a camisinha é importante.

E por que não usam ou param de usar? Há três explicações para esse comportamento.

Primeira, a certeza de que “nada ruim acontece, quando se é jovem”.

Segunda, o fato de HIV/aids só aparecer na grande imprensa em 1º de dezembro, Dia Mundial de Luta contra a Aids, e no carnaval, apesar de  o Departamento ter programa de prevenção o ano inteiro. Como “eu não vejo” ninguém importante falecendo com HIV/aids, no imaginário  aquela epidemia de morte dos anos 80 e grande parte dos 90 acabou, embora tenhamos 11 mil óbitos anuais.

Terceira, o preconceito, senso lato. Na cabeça de todos nós, as pessoas feias, estranhas e diferentes são as “problemáticas”. Só que o HIV não tem “marca”.  As pessoas infectadas são absolutamente comuns, iguais a todo mundo.

Ao tirar da história de HIV/aids o preconceito que tem “marca”, pode ser que, gradualmente, a gente, de tanto bater na mesma tecla, consiga fazer lembrar que o HIV/aids existe. Fazer lembrar também que não é só HIV/aids que se transmite por relação sexual. O HIV está aí, disponível para todo mundo.

Viomundo — O HIV é democrático, não tem preconceitos e  as aparências enganam.

Dirceu Greco – Com certeza. Só que, geralmente, as pessoas esquecem isso. Só voltam a lembrar quando alguém próximo descobre que está infectado pelo HIV.

Viomundo – Objetivamente o que o Ministério da Saúde está fazendo para mudar essa situação?

 

Dirceu Greco – O caminho é discutir continuamente o tema sexualidade na sala de aula, não basta ter preservativo na escola. Nesse sentido, os ministérios da Saúde e  da Educação desenvolvem em conjunto o projeto Saúde e Prevenção nas Escolas. Mais de 66 mil escolas do Brasil inteiro já participam. Essa experiência está no início e  funciona. O caminho é a prevenção na escola, para atingir cada vez mais meninos e meninas.

Viomundo — E os pais não resistem à ideia?

Dirceu Greco – Uma parte, sem dúvida.  E não poderia ser diferente num país que, em certo sentido, está mais conservador do que nunca, como mostrou a eleição presidencial deste ano.

A propósito, o Ministério da Saúde lançou um projeto para fabricar máquina de preservativo a ser instalada em escolas. Fui a Santa Catarina debater o assunto. A discussão foi enorme. De microfone em punho, várias pessoas esbravejaram contra a nossa proposta. Não queriam de jeito algum a colocação da máquina nas escolas, sob a alegação de que iria levar o “menino de 12, 13 anos” a começar a transar.

Viomundo – Mas na sala de aula é que é possível atingir a garotada de diferentes gerações e condições socioeconômicas.

 

Dirceu Greco — Com certeza. É um processo de educação continuada. E se a escola incorporar, não é preciso todo ano alguém do ministério ir lá para ensinar.

Assim como na escola se aprende  português, inglês, matemática,  é preciso também na escola se aprender  sobre sexualidade no  sentido mais amplo. E o preservativo faz parte dela.

Viomundo – No imaginário coletivo, aprendeu sobre camisinha, resolveu. Mas, na prática, não é bem assim, até porque a garotada muda…

 

Dirceu Greco — Por isso. insisto:  a sexualidade tem de ser discutida continuamente nas turmas mais adiantadas do ensino fundamental e  ensino médio. O HIV, apesar da tragédia que acarretou, trouxe benefícios. Se não fosse o HIV, essa discussão não estaria acontecendo.  Há 25, 30 anos já existia o risco para outras doenças sexualmente transmissíveis, como sífilis, hepatite B, HPV, mas era ignorado.

Vou mais longe. Mesmo que apareça a cura da aids ou uma vacina que elimine o HIV,  nós teremos de continuar nos  cuidando, pois doenças sexualmente transmissíveis, complexas, graves, vão continuar por aí.Talvez até se torne mais difícil se discutir prevenção, pois no imaginário das pessoas a única doença complicada, grave, é HIV/aids, o que não é verdade.

Viomundo – O fato de a terapia antirretroviral ser hoje mais simples do que antigamente  [em 1998,  implicava tomar 20, 30 comprimidos por dia ] não dificulta a prevenção, pois “lá no fundo” as pessoas sabem que tem tratamento eficaz para aids?

Dirceu Greco – Conscientemente, ninguém vai se deixar infectar, porque a aids tem tratamento. Todo mundo sabe o quanto é difícil, apesar de ter se simplificado bastante. Hoje, começa com três comprimidos por dia.  Mas você tem razão. O tratamento facilitado pode levar, inconscientemente, ao relaxamento na prevenção.  De novo, o imaginário coletivo, atuando contra: a aids sumiu do noticiário, “eu não sou de nenhum grupo dessas coisas aí”,   “se, por acaso, eu me infectar, tem tratamento”…

Viomundo — Quando deve ser iniciado o tratamento antirretroviral?

Dirceu Greco — Quando a pessoa  começa a ter sintomas de aids e/ou a contagem de células CD4 [células de defesa do organismo] no sangue está abaixo de 350 cópias.  São três comprimidos por dia, até que surja a cura. Portanto, por ora, a pessoa vai tomar a medicação para o restante da vida.

Mesmo com três comprimidos diários, não é fácil manter o tratamento. Aposto que você já tomou algum dia amoxicilina [antibiótico]. Pois é grande a probabilidade de ter deixado de tomar um comprimido, porque esqueceu de levar para o trabalho,  voltou tarde para casa ou outro imprevisto. Imagine a pessoa com aids que é obrigada a tomar remédios todo dia.

Viomundo — Do que depende a adesão?

Dirceu Greco — Adesão  relaciona-se não só ao recebimento do medicamento, mas à pessoa ser bem cuidada, ter acesso ao médico, ao serviço de saúde,  se tiver efeito colateral. Poder conversar também com alguém, caso tenha alguma dúvida.  Esse é o caminho. É uma questão muito complexa, que a gente tem de discutir.

Viomundo — Hoje, quando o senhor atende um paciente recém-diagnosticado para HIV, o que diz a ele?

Dirceu Greco — Se esse paciente mora no Brasil, onde o acesso à terapia antirretroviral é gratuita e universal, e tem adesão ao tratamento, eu posso dizer que ele vai sobreviver ao HIV. Por isso, quem já viveu  situações de risco para aids, deve fazer o teste para saber está infectado pelo HIV. Se positivo, se tratar. Certamente vai sobreviver ao HIV também.

Viomundo –A pessoa infectada pode ficar anos e anos com o HIV sem saber, já que inicialmente a doença não dá sintomas. Qual o peso do diagnóstico precoce?

Dirceu Greco — Quanto mais precocemente se souber infectado, mais cedo se cuida. E quanto mais cedo o tratamento, mais eficaz é. O sistema imunológico não piora. A pessoa não começa a ter infecções secundárias e pode viver a vida inteira dela com infecção crônica controlada. O acesso ao tratamento diminui também a transmissão do HIV.

Viomundo — Quem deveria fazer o teste de aids?

Dirceu Greco – Pessoas com vida sexual ativa e que não usam preservativo  — e deveriam! Quem nunca fez o teste de aids. Também quem compartillha ou já compartilhou seringas e agulhas. Essas pessoas  devem fazer o teste e passar a usar preservativo em situações de risco.

Viomundo –Por que essas pessoas deveriam fazer o teste?

Dirceu Greco — Das cerca de 630 mil pessoas vivendo com o HIV no Brasil,  dessas, 255 mil não conhecem sua sorologia, pois nunca fariam o teste de aids.

Só que, do ponto de vista epidemiológico, o diagnóstico é fundamental para controlar a  epidemia. Saber precocemente se  você tem o HIV permite-lhe começar o tratamento no momento certo e ter uma melhor qualidade de vida.  Além disso, mães soropositivas podem aumentar suas chances de terem filhos sem o HIV, se forem orientadas corretamente e seguirem o tratamento recomendado durante o pré-natal, parto e pós-parto.

Viomundo — Quais as situações de risco para o HIV?

Dirceu Greco –   O HIV pode ser transmitido:

• Por relações sexuais desprotegidas (sem o uso do preservativo) com pessoa que você não sabe a sorologia.

• Pelo compartilhamento de agulhas e seringas contaminadas.

• De mãe para filho durante a gestação, o parto e a amamentação.

• Por transfusão de sangue contaminado.

Por isso, nessas situações é importante fazer o teste de aids, para saber se a pessoa está infectada e começar a se tratar, se der positivo.

Viomundo — Aos profissionais de saúde, o que acrescentaria?

Dirceu Greco ––  A todo paciente que atendo, eu pergunto se tem vida vida sexual ativa.  Se sim, digo que valeria a pena avaliar para hepatite,  sífilis e HIV.  Se houver infecção, a gente trata. Mas isso não é comum, não.

Acho que os meus colegas deveriam ofereer a possibilidade de teste aos seus pacientes. Não pode ser  compulsório nem escondido.  Mas valeria a pena avaliar, pois se o paciente tiver hepatite, dá para tratar. Sifilis, também. Se tiver HIV, quando mais cedo, melhor.  Mas reconheço que é difícil,  pois os profissionais de saúde não estão habituados. Mas quanto mais falarmos sobre isso, mais chances aparecerão de essa conversa acontecer.

Viomundo — Quantas pessoas se tratam para aids hoje no Brasil?

Dirceu Greco — Duzentas mil. Temos 20 medicamentos disponíveis (são 32 formulações diferentes),  sendo 10 fabricados aqui, um deles sob licença compulsória no governo Lula. Tudo isso é SUS [Sistema Único de Saúde].

Viomundo — Se não houvesse o SUS,  seria possível tratar essas 200 mil pessoas?

Dirceu Greco — Várias coisas se juntaram para dar certo o enfrentamento brasileiro à epidemia de aids.  A  condição sine qua non foi  ter o SUS, que  é capilarizado e atinge todo o território nacional.  A distribuição dos antirretrovirais é feita integralmente pelo SUS. Sem ele, teríamos uma dificuldade tremenda de colocar o programa em funcionamento.

Aliás, a decisão de fornecer o tratamento a todos os pacientes foi uma das mais sábias. Quando ela foi tomada, houve muita pressão para dar o medicamento para quem não podia pagar e cobrar proporcionalmente de quem podia pagar. Se essa pressão tivesse vencido, teria sido um desastre.  O Ministério da Saúde investe 400 milhões de dólares anualmente na compra desses remédios. Em vez de encarecer, barateou o tratamento. Não tem um roubo de medicamento. As farmácias não têm grade. A pessoa vai roubar para fazer o que com eles? Todo mundo tem acesso!

 

Fonte: Viomundo

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