Sinergias que importam: integrando clima, biodiversidade e justiça racial no Brasil

21/10/25
Por Mariana Belmont
Integrar clima, biodiversidade e combate à desertificação exige enfrentar o racismo ambiental, fortalecer direitos territoriais e colocar povos e florestas no centro da ação global.

As três grandes crises do nosso tempo — a crise climática, a perda de biodiversidade e a degradação dos solos — nunca estiveram separadas na vida real. É o mesmo território sendo violado, o mesmo corpo sendo atravessado, as mesmas populações sendo sacrificadas e as desigualdades aprofundadas. Ainda assim, por mais de três décadas o sistema internacional tratou essas agendas como compartimentos estanques: clima na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), biodiversidade na Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD) e desertificação na Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD). Essa fragmentação nunca foi neutra: ela serviu a interesses econômicos e geopolíticos que lucram com a falta de coordenação, enquanto comunidades afrodescendentes, povos indígenas e populações tradicionais seguem pagando a conta com seus corpos e territórios.

A fragmentação entre as três convenções ambientais gera sobreposição de ações, falta de sinergia nas políticas, dificuldade de financiamento integrado e monitoramento fragmentado. Projetos muitas vezes são implementados separadamente, desperdiçando recursos, e ações voltadas para mitigação climática podem entrar em conflito com a conservação da biodiversidade ou a prevenção da desertificação. Essa divisão institucional e diplomática dificulta estratégias globais coerentes, compromete a efetividade das políticas e limita o potencial de benefícios múltiplos para ecossistemas, comunidades locais e populações vulneráveis.

Com a proximidade da 30ª Conferência das Partes da UNFCCC — a COP30, em Belém — e a pressão global para alinhar de vez as chamadas “Convenções do Rio”, a palavra sinergia virou o novo mantra e cada vez mais ouvida nos corredores e conversas sobre as agendas. O Brasil, inclusive, apresentou propostas defendendo maior integração entre as agendas, como o fortalecimento do grupo de articulação técnica entre as três convenções e a criação de programas de trabalho que alinhem as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), os Planos Nacionais de Adaptação (NAPs) e as Estratégias e Planos Nacionais de Biodiversidade (NBSAPs). Na teoria, trata-se de uma oportunidade histórica. Na prática, precisamos aprofundar mais essa conversa, com mais gente na sala.

Esse debate ganhou força depois do primeiro Balanço Global do Acordo de Paris — o Global Stocktake de 2023 — e das decisões da Conferência da Biodiversidade de 2024 (COP16). A partir daí, a Organização das Nações Unidas passou a pressionar os países a integrar políticas de clima, biodiversidade e uso do solo. O argumento oficial parece irrefutável: não é possível cumprir o Acordo de Paris se a CBD seguir ignorada, nem restaurar ecossistemas se o colapso climático continuar avançando. O Brasil, os Emirados Árabes e os presidentes das Conferências das três Convenções começaram então a falar em “sinergias” como solução para dar coerência ao sistema, reduzir contradições e acelerar compromissos. É esse processo que chega ao seu auge agora, às vésperas da COP30.

Se colocarmos os direitos humanos e a justiça racial no centro, a agenda de sinergias pode, enfim, romper com a lógica que transformou biomas em mercadoria e populações inteiras em zonas de sacrifício. É preciso reconhecer que a Amazônia, Cerrado, Caatinga e outros biomas são territórios vivos onde povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais protegem a natureza há séculos — apesar do Estado, não graças a ele.

A agenda de sinergias também precisa reconhecer que a população afrodescendente é guardiã de territórios, saberes e práticas essenciais para a conservação da biodiversidade. A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) já deu um passo decisivo ao reconhecer, por meio do Artigo 8(j) — dispositivo que garante a proteção, o respeito e a repartição de benefícios relacionados aos conhecimentos tradicionais de povos indígenas e comunidades locais — o valor desses saberes e o direito das comunidades que os detêm à participação e à justiça. Esse avanço precisa agora dialogar diretamente com as políticas climáticas e com as ações contra a desertificação. Em um cenário em que quilombos, terreiros e comunidades afrodescendentes rurais e costeiras enfrentam racismo ambiental, expulsões e degradação de seus territórios, integrar biodiversidade, clima e direitos é uma urgência civilizatória. Sem sinergias que incorporem a agenda do 8(j), a proteção da natureza continuará incompleta e injusta — porque seguirá ignorando quem, na prática, a protege há séculos.

Da mesma forma, a agenda de sinergias não pode se limitar às florestas — porque a crise socioambiental também tem CEP, cor e gênero definidos nas cidades. As periferias urbanas, majoritariamente afrodescendentes, são territórios onde o racismo ambiental se materializa em enchentes, deslizamentos, ilhas de calor, falta de saneamento e ausência de áreas verdes. Proteger a biodiversidade e enfrentar a crise climática também significa garantir direitos humanos e combater as desigualdades nas cidades, reconhecendo o direito das populações periféricas à infraestrutura, resiliência climática e participação nas decisões. Sem incorporar as periferias urbanas — onde vive a maioria da população afrodescendente do país — qualquer sinergia será pela metade, porque não há avanços possíveis mantendo a desigualdade ambiental, racial e social como arquitetura do cotidiano.

O Brasil só terá legitimidade para liderar essa agenda se enfrentar sua maior contradição interna: somos potência ambiental no discurso, enquanto seguimos sendo um dos países que mais mata defensoras e defensores da terra e que mais desmata ilegalmente. Não existe sinergia séria com racismo ambiental, grilagem e violência fundiária. Integrar Convenções, aqui, significa integrar também políticas de demarcação, titulação, direito e proteção de territórios. 

Para transformar sinergia em ação real, algumas medidas são inegociáveis. Organizações da rede do Observatório do Clima enviaram nos últimos dias uma submissão com recomendações para enriquecer as discussões: (1) garantir participação vinculante de povos indígenas, afrodescendentes, marisqueiras, pescadores artesanais e comunidades tradicionais em todos os espaços de decisão; (2) adotar planos concretos, com financiamento e transparência, para zerar o desmatamento em todos os biomas até 2030; (3) alinhar clima, biodiversidade e solo com políticas explícitas de combate ao racismo ambiental; e (4) canalizar recursos financeiros diretamente aos territórios, sem atravessadores corporativos.

A COP30 não pode ser uma feira de anúncios verdes. Ou inaugura uma era de coerência entre direitos humanos e política ambiental — ou será apenas mais um capítulo de promessas vazias embaladas pela palavra “sinergia”. No território, a verdade é simples: não há clima sem floresta, não há floresta sem povo e não há povo sem direitos.

O mundo está olhando para o Brasil. Chegou a hora de sair do discurso e assumir, com coragem, a única sinergia que importa: aquela que une direitos humanos, justiça ambiental e justiça racial. Qualquer coisa aquém disso é só retórica pintada de verde.


Mariana Belmont é jornalista, pesquisadora, assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra e organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Instituto de Referência Negra Peregum e Oralituras, 2023).

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