Sintonia fina, por Sueli Carneiro

De 26 a 28 de julho de 2006, Brasília sediou a Conferência Regional das Américas, também chamada Santiago+5, por haver sido convocada para avaliar os avanços obtidos e os desafios persistentes para a implementação dos consensos alcançados entre os governos e a sociedade civil das Américas na Conferência de mesmo nome realizada em dezembro de 2000 em Santiago do Chile. Esse evento, por sua vez, foi preparatório da participação da região americana na III Conferência Mundial Contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em 2001, na África do Sul. Dessa vez coube ao Brasil sediar o evento organizado em parceria com o governo chileno e com o Alto Comissariado das Nações Unidas e a sociedade civil representada por um comitê internacional formado por organizações do continente americano. Estiveram presentes 21 países com representação oficial e entidades da sociedade civil dos 35 países da América Latina, Caribe, América Central e América do Norte, representando afro-descendentes, indígenas, ciganos, mulheres, jovens, migrantes e GLBTT.

Por Sueli Carneiro, do Jornal Correio Braziliense – Coluna Opinião

A expressiva participação de governos, sociedade civil e organizações multilaterais é a demonstração do avanço do tema do combate ao racismo, e diferentes formas de discriminação no continente americano nos últimos anos.

No que diz respeito à questão racial, a conferência pôs em evidência que o que ocorre hoje no Brasil em torno desse tema é um fenômeno mais abrangente que está presente em diferentes níveis, no conjunto da região. Alguns estudos buscam compreender-lhe o sentido. Um deles dedicado a avaliar o prestígio da democracia, em especial na América Latina, empreendido por Marta Lagos, diretora-executiva da Fundação Latinobarómetro (que desde 1996, realiza pesquisa sobre o apoio à democracia em 18 países do continente), aponta a justaposição de raça, classe e poder nos desafios e contradições que marcam a América Latina contemporaneamente.

Lagos assinala que os processos de redemocratização da América Latina trouxeram como uma de suas conseqüências a emergência da questão étnico/racial na região como um componente a ser considerado no que tange ao futuro das nossas democracias. Há, segundo Lagos, um ponto articulador na história dos países latino-americanos que seria irrecorrível: “Esses países sempre foram governados por oligarquias brancas, que excluíram uma imensa parte das populações” (Folha de S.Paulo, 25/4/05). Lagos considera, ainda, que a inapetência das elites da região latino-americana para a democracia, que se manifesta na ausência de vontade política para a inclusão das massas excluídas, é a razão para as convulsões políticas enfrentadas por alguns países da região presentemente.

A Conferência das Américas buscou enfrentar esse rol de contradições como mais um passo nos esforços de atender às deliberações da Conferência de Durban, avaliando os progressos e desafios da região na implementação das políticas recomendadas para o combate ao racismo. Entre os avanços, destacou-se o fato de existirem hoje nas Américas 17 organismos governamentais encarregados de promover políticas de inclusão racial e étnica; a criação da relatoria especial para assuntos afro-descendentes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA e o processo em curso de negociação com os Estados para a aprovação da Convenção Interamericana de Combate ao Racismo.

O documento final produzido pela conferência reúne as proposições para a promoção da igualdade racial e o combate ao racismo e às desigualdades raciais e às demais formas de discriminação. Entre as inúmeras recomendações aos governos, a conferência ressaltou “a necessidade de adotar e implementar políticas de ação afirmativa para reparar as injustiças históricas, erradicar a discriminação sócioracial e criar grupos de representação diversa e proporcional nas estruturas de poder”.

E o Brasil está bem na foto? Comparativamente sim, na medida em que é o país em que o tema apresentou os maiores avanços em termos institucionais, de iniciativas em políticas públicas, e do ponto de vista da mobilização social em prol da promoção da igualdade racial.

O relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre formas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerâncias correlatas, Doudou Diéne, presente na conferência, disse que o sucesso do Brasil no combate ao racismo é uma condição importante para a transformação de toda a América. Essa é a nova responsabilidade que é acrescida ao país além daquelas já conhecidas, que decorrem de sua importância geopolítica na região.

Em fina sintonia com essa expectativa, a sociedade brasileira apresenta o índice de 65% de aprovação às políticas de ação afirmativa e cotas para negros e indígenas conforme pesquisa divulgada recentemente pelo Datafolha. Resta ao governo e ao Congresso fazerem a sua parte para aprofundar e consolidar um processo que pode se tornar virtuoso para o fortalecimento da democracia e realização da igualdade em nossa região. Respaldo social para isso é o que não lhes falta.

 

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