Sobre mulheres negras e caixões abertos

[Aviso de gatilho: esse texto contém imagens fortes]

Por Tulio Custódio, do Medium 

Esse pequeno texto é um comentário sobre a frase da professora Angela Figueiredo, na abertura da palestra proferida por Angela Davis na UFRB:

“O movimento das mulheres negras é o movimento social mais importante no Brasil hoje”

Eu, homem negro, tendo acreditar que isso parece fazer sentido há muito tempo…

Gostaria de lembrar uma personagem da história recente do século XX, Mamie Till. Mamie Elizabeth Till-Mobley, que viveu entre 1921 e 2003, foi mãe de Emmet Till, jovem de 14 anos assassinado brutalmente em 1995, no Mississipi, acusado de flertar com uma menina branca.

Na época, Mamie Till pronunciou duas frases que fazem muito sentido com a fala da Angela Figueiredo — respaldada pela Angela Davis, ao mencionar que o capitalismo teme a organização das mulheres negras:

– 1) “I wanted the world to see what they did to my baby.” [Quero que o mundo veja o que fizeram ao meu bebê]

– 2) “I don’t have a minute to hate, I’ll pursue justice for the rest of my life.” [Eu não tenho nem um minuto para ódio, vou buscar justiça pelo resto de minha vida].

A primeira frase, só pode ser entendida conectada com outra:

“When people saw what happened to my son, men stood up who had never stood up before. People became vocal who had never vocalized before.” [Quando as pessoas verem o que aconteceu com meu filho, elas vão se levantar como nunca se levantaram antes. Pessoas vão se pronunciarem como nunca se pronunciaram antes”].

Ao expor aquela imagem violenta, Mamie Till não apenas dividir com o mundo aquela dor que a consumia, enquanto uma mãe que perdia seu filho. Ela levou ao mundo, expôs de maneira crua e explícita as consequências de uma sistema opressor violento e desumanizador orientado pela supremacia branca, tangibilizado nos EUA na época nas políticas segregacionistas do Jim Crow.

Essa dor, que foi partilhada e serviu como faísca para fogo dos protestos e da insurgência, da revolta que marcara a movimentação para mudança do status social daquele povo negro, advém portanto da forma como aquela mulher negra escolheu não sofrer sozinha com a imagem de seu filho desfigurado, extremamente danificado pela violência que sofrera.

Não queremos ver corpos esfacelados…

Quando penso nessa imagem e na provável intenção, penso — em um salto que pode ser anacrônico (ok, isso não é uma tese) mas sem dúvida carrega inspirações — no modo como contemporaneamente as mulheres negras expõem suas dores. Na forma da fala pública e das manifestações que foram organizadas — e hoje á a base de movimentos como Black Lives Matter — , ou na forma de textos, relatos, histórias de seu fórum íntimo, essas mulheres estão mantendo os caixões abertos.

Isso porque a essas mulheres, cada vez mais, parece que em nada faz sentido manter para si as violências que sofrem. Seja a oriunda da supremacia branca, que vem a galope pelas estruturas de privilégios que mantêm essas mulheres na base da invisibilidade social (enquanto sujeitos da história), mas destina lugar de uso e apropriação de seus corpos, afetos e sonhos que amplia suas dimensões da falta de sentido, significado e amor (laços). Seja da opressão de gênero, infelizmente reproduzida também por seus irmãos negros, nas quais elas são vítimas de violências e negligências de ordem física, sexual, afetiva e moral.

Essas dores não podem mais ficar internalizadas…

Muitas vezes descobrimos isso em forma de um relato público; ou algo considerado um escândalo. Nessas circunstâncias geralmente nós, homens (incluindo negros), tendemos a acreditar que aquilo não “deveria ser a melhor maneira de lidar com os fatos”. Nós homens (incluindo negros) estamos a todo momento dizendo para elas: “melhor você fechar o caixão”…

Mas o caixão está aberto! E a imagem que nos consagra da violência e dos abusos é a imagem que insurgem faíscas. Faíscas de um fogo profético que, nas palavras do filósofo Cornel West, carrega as bandeiras de uma luta pela justiça, igualdade e pela verdade. A verdade… A verdade de vermos os corpos esfacelados da violência acometida contra essas mulheres é muitas vezes mais desconfortável do que nossa própria percepção acerca dessa violência. No fundo, parece que queremos que elas chorem sozinhas. No fundo, nós não queremos ver aquele corpo esfacelado no caixão. No fundo, sabemos que temos alguma parte nisso.

E uma observação para evitar más leituras ou interpretações generalistas de mentes cansadas de reflexão ou não dispostas ao desconforto que as verdades nos colocam: quando falamos em, nós homens negros, “termos parte disso” não significa que estamos diretamente, na mesma reta, associados às violências impostas pela supremacia branca. Como se fosse uma coisa só… No entanto, a violência de gênero — perpetuada pelo nosso machismo, resultado de nossa confusão existencial em querer performar uma categoria de existência que não nos pertence [vou escrever sobre isso ainda…] — é sim uma grande colaboradora para os mesmos resultados desejados pela supremacia branca. É um hit de sucesso do “Racismo Feat. Sexismo”, quando violentamos física, social, cultural, sexual e afetivamente mulheres negras, porque na essência, estamos ajudando a eliminar a possibilidade de existência compartilhada sã desses indivíduos mulheres, e de sua coletividade. No limite, estamos fechando o caixão. Paremos e pensemos sobre o que significa “fazer parte disso”.

Voltando ao texto…

Mas ao mesmo tempo que essas mulheres negras vêm mantendo o caixão aberto, e mostrando os efeitos perversos de todas essas violências tangibilizadas e ilustradas naquele corpo esfacelado e destruído em nossas frentes, em uma espécie de choro e choque coletivo — o que caracteriza um estado constante de um velório social (tipo de reação muito própria do público quando vivencia e reage a situações expostas publicamente dessas violências, e portanto, de novos corpos esfacelados gerados) —, são elas que entoam e ressignificam com mais força e potência a segunda frase de Mamie Till: “I don’t have a minute to hate, I’ll pursue justice for the rest of my life.“.

Essa frase nos faz lembrar que o caixão aberto é apenas a primeira parte da história. O caixão aberto revela. O caixão aberto escancara. Mas é a partir dele, que a insurgência e a capacidade da revolta se coloca. E essa revolta, tanto da raiva como enfrentamento — presente no legado de Audre Lorde — , ou da revolta como tomada de consciência — presente no pensamento de Abdias do Nascimento — é a direção da ação direcionada à justiça de que todos buscamos. A fala dessas mulheres negras não é de ódio. O caixão está aberto… A fala dessas mulheres negras é pela reversão e transformação dessa realidade. Uma revolta que gera faíscas. Um fogo que queimará e, sem dúvida, como pontuou Angela Davis, gera medo na supremacia branca e no patriarcado. Potência que não muda só a comunidade, pois restaura o indivíduo e consagra a coletividade. E tudo dentro da diáspora .

A imagem de Mamie Till e sua fala adquiriram para mim outro sentido diante dessa colocação das Angelas. E, acredito, até para uma perspectiva de um “eu sou porque nós somos” temos que falar, pensar e olhar para o caixão que está aberto. Com nossos fósforos em mãos…

Ah, para quem não conhece a história: a morte de Emmet Till em 1955 é considerada o evento catalisador para início dos movimentos pelos direitos civis nos EUA. Cerca de alguns meses depois, Rosa Parks se nega a sentar no fundo do ônibus. Outra faísca de um fogo profético da luta, insurgência. Outra mulher negra.

PS: caso não tenha visto a conferência dada por Angela Davis na UFRB, aqui:

Tulio Custódio

Sociólogo, Curador de Conhecimento na Inesplorato, criador do site @Pitacodemia e membro do Coletivo Sistema Negro. Mais: about.me/custodta ;)

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