Sobre ser negro e gay

Certa vez me perguntaram qual identidade foi mais difícil de lidar: ser gay ou ser negro? Na época respondi que, por meus pais serem negros, descobrir-me gay foi mais traumático porque ainda não havia referenciais não-estereotipados do que significaria sentir atração por pessoas do mesmo gênero. Porém, o que eu não atentava naquele momento é que os exemplares enaltecidos pela cultura gay masculina costumam ser todos malhados, classe média alta e brancos. Que homens negros acabam restritos, no mundo gay, aos nichos fetichistas da indústria pornô. Em alguma categoria entre “Amadores” e “Zoofilia”.

Por Leopoldo Duarte Do Revista Fórum

Recentemente passei a questionar se a minha associação à identidade gay foi mais fácil porque essa era a única identidade masculina, com peso político, na qual eu poderia ser parceiro da branquitude. Certamente não estou dizendo que a minha atração sexo-afetiva foi conduzida pelo anseio de assimilação a homens brancos, até porque essa minha orientação se manifestou bem antes da puberdade e do meu conhecimento sobre uma identidade que não fosse a da popularmente desprezada bicha. O que quero dizer é que me autodeclarar gay ajudou a me empoderar diante da opressão heteronormativa que sempre pesou sobre mim. Sem contrariar a opressão racista da nossa sociedade pois homossexualidade “não tem cor”.

Por mais que pareça absurdo, aceitar-me negro foi um processo bem mais complexo do que se imagina. Apesar de ter nascido distintamente negro, o racismo agiu de tal forma que por muito tempo eu relutei em ser visto como um menino, um jovem e até mesmo um escrevedor negro. Ou seja, ao tentar me dissociar de toda pejoratividade atribuída à negritude na nossa cultura, me esforcei em negar o óbvio: sempre serei lido como negro antes de toda e qualquer outraparticularidade.

Falando nesses termos tudo parece lógico e evidente, mas a realidade é que nada foi tão simples assim. Por um bom tempo a necessidade de defender e exercer a minha sexualidade “desviante” fez com que eu colocasse o racismo em um segundo plano. Como se em algum momento a identidade gay pudesse ter eclipsado as consequências sociais de ser negro. Só me dei conta da marginalização das pautas negras na comunidade gay quando me deparei com a história do (trans)feminismo negro. De certa forma a urgência por afeto e sexo da juventude me cegaram aos problemas inerentes a qualquer identidade política fundada por pessoas brancas — da mais conservadora a mais esquerdopata —, amais ou menos completa ignorância diante das sequelas individuais e coletivas de séculos de hierarquização racista.

Embora tenha me desiludido com o movimento LGBT jamais poderei deixar de levantar essa bandeira, porém tenho absoluta certeza de que dificilmente encontrarei apoio nessa comunidade caso sofra alguma agressão racista — como, inclusive, já presenciei numa Parada do Orgulho “alternativa” ano passado. Não pormaldade dos militantes, mas pelo simples fato de que a identidade gay, e até mesmo LGBT, é uma construção pautada na branquitude, ou seja, na crença de que pessoas brancas representam, idealmente, toda a diversidade humana e de que a luta anti-racismo seria algo secundário e desagregante.

Afirmo essa postura apesar de reconhecer a enorme dificuldade que alguns militantes negros têm em aceitar que a homo e a transexualidade não são umainvenção ocidental, mesmo havendo indicativos históricos do contrário. Simplesmente porque considero essa confusão compreensível a partir do momento em que, nesses casos, argumento que oque de fato não teve origem na África foi a homofobia. Uma opressão que, depois de séculos de perseguição, levou à criação da distinção entre homo e heterossexuais. Entre desviantes e “normais”. E que, em contrapartida, deu razão à invenção da identidade política baseada na expressão individual da sexo-afetividade: gay.

A diferença entre esses dois impasses fica por conta de que enquanto o movimento negro me representa simbólica e politicamente, o movimento LGBT frequentemente me invisibiliza e fetichiza — como um dildo “bem servido” e com pegada “rústica”. Enquanto que entre militantes negros eu sou visto como umirmão (em potencial), ainda que neguem a minha sexualidade, em ambientes LGBT não é incomum a minha presença despertar o impulso de averiguar pertences ou a procura por segurança.

Contudo, o principal motivo pelo qual hoje eu me identifico como negro antes de gay não se limita a obviedade da coisa, mas sim porque foi mais difícil, pra mim, me posicionar como negro do que como um homem gay. Nem tampouco porque a minha sexualidade não é acessível tão imediatamente quanto a minha raça, mas porque assumir a minha negritude exigiu uma ruptura severa com os ideais dominantes — que negam o racismo ao pregar a existência de uma democracia racial e que cultuam uma estética e valores eurocentrados, por exemplo. Digo isso porque o que não falta por aí são pessoas negras que não se reconhecem e nem se posicionam como tal. Que se orgulham em serem “discretas e fora do meio”. Esforçadas e não-vítimas. Como se racistas estivessem interessados em saber de algo da vida daqueles que pretendem colocar em “seu lugar”.

+ sobre o tema

Sobre transexualidade, feminismo interseccional e sororidade

“Não se nasce mulher, torna-se.” Zaíra Pires para o Blogueiras Negras Creio que...

Fotógrafa registra acampamento para crianças que questionam as normas da identidade de gênero

Talvez um dos grandes tabus contemporâneos seja sobre pessoas...

Mulheres levam surra na saída de boate gay e acusam homofobia

Duas mulheres foram agredidas na saída de uma boate...

Candidato revela ser gay em horário político no Ceará; veja vídeo

Aílton Lopes (PSOL) diz ser gay na propaganda eleitoral...

para lembrar

Um crime de ódio é registrado a cada 12 horas na cidade de São Paulo

A Polícia Civil registrou um crime de intolerância a...

Cunha e a cruzada contra “gays, abortistas e maconheiros”

Favorito à presidência da Câmara é ainda defensor da...

Finalmente as desculpas de Domenico Dolce do Dolce&Gabanna aos pais gays

FOI PRECISO CINCO MESES PARA QUE DOMENICO DOLCE, DA...
spot_imgspot_img

Um crime de ódio é registrado a cada 12 horas na cidade de São Paulo

A Polícia Civil registrou um crime de intolerância a cada 12 horas na capital entre janeiro de 2016 e agosto deste ano. Ataques de...

Taís Araújo recebe título de defensora de Direitos das Mulheres Negras

No posto, a atriz terá a missão de apoiar iniciativas da organização no combate ao preconceito no Noticia aos Minutos Conhecida por levantar a bandeira da...

A maravilhosa resposta de uma menina de 11 anos às críticas por ter sido adotada por um casal homoafetivo

Quando Rob Scheer tinha 10 anos, perdeu seus pais e acabou indo parar em um orfanato. Foi lá que viveu sua infância, junto a...
-+=