Já faz alguns dias que não me sai da cabeça uma frase que ouvi no filme “Educação Proibida” do cineasta argentino German Doin. Lá, um filósofo afirma que muito se fala em educar pela paz, mas geralmente educamos as crianças para a competição, e a competição é o caminho mais curto para a guerra.
Enviado por Erica de Cássia Modesto Coutrim via Guest Post para o Portal Geledés
Minha alma, que se tornou ainda mais negra, desde o nascimento de minha filha, me transportou à minha infância, às lembranças de todas as vezes em que meu pai, num esforço humilde e bem-intencionado de me fortalecer ou proteger, me dizia quase diariamente: “Você, como negra, tem de dar sempre o melhor, na escola ou no trabalho. Você terá sempre de ser a melhor.
Aquelas palavras, que não faziam muito sentido para a criança de então, fizeram de mim uma excelente aluna, uma ótima profissional, uma acadêmica, mas deixaram em minha alma um buraco, que acho que jamais será preenchido: o de que quem eu realmente sou não basta, porque sou negra.
Na intenção de proteger seus filhos do preconceito, da agressão, e até mesmo da morte, muitos pais e mães negros educam seus filhos com a ideia de que, se eles querem competir, têm de trabalhar mais, estudar mais, enfim dedicar-se mais, em tudo. Ora, a dedicação é uma coisa boa, quando por amor, por curiosidade, por busca pelo conhecimento, mas não para tentar encontrar em si mesmo um valor que, por natureza, todos temos, independentemente do que pensam ou falam de nós.
Não somos iguais, geneticamente somos todos diferentes, e a diferença tem de ser não somente respeitada, mas preservada, trata-se de uma questão de evolução.
As palavras do meu pai, frutos de uma sociedade racista, em que a voz, a historia e a vida negra foram caladas, queimadas e elimidas, me feriram, mais que me fortaleceram, sem que eu soubesse, e sem que ele soubesse. Aquelas palavras, no entanto, fazem com que todos os dias eu diga à minha filha: “Você tem a liberdade de ser quem você é, ou ser o que você quiser. Não deixe jamais que alguém diga que quem você é não é suficiente, é suficiente para mim e tem de ser suficiente para você. Você não é diferente ou melhor que ninguém, mas também não é igual e nem pior. Você é você. E isso basta!
Berlim, 29 de fevereiro de 2016
Erica Coutrim
Doutoranda em Linguística Aplicada – FEUSP
Mestre, bacharel e licenciada em Língua e Literatura (português e alemão) – FFLCH-USP
Negra, filha de Gerson Xavier Coutrim, homem trabalhador e admirável, para quem a vida como negro e pobre foi pesada demais para ser suportada.
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