‘Sobrevivi à chacina da Candelária, me formei e levei arte à Casa Branca’

“Há 29 anos eu morava na rua quando aconteceu a chacina da Candelária (julho de 1993), no centro do Rio de Janeiro. Estava há poucos metros dali. Conhecia as vítimas e ainda tenho contato com alguns sobreviventes, mas não deixei esse episódio me derrubar. Estudei, passei na UFRJ e na UERJ, tomei chá com a então primeira-dama dos Estados Unidos Hillary Clinton, na Casa Branca, em Washington (EUA), e tenho minha arte espalhada pelo mundo.

Eu morei com meus pais e mais três irmãos em Honório Gurgel, na zona norte, até os 8 anos. Meu pai era sócio de uma empresa de ônibus e nossa situação era boa. Mas ele teve um primeiro derrame cerebral, com graves sequelas. Minha mãe trabalhava em um hospital, mas os gastos com a recuperação dele nos deixaram sem nada.

Fomos então morar na comunidade Fazenda Botafogo, em Acari, e no mês que eu ia completar 15 anos ele teve o segundo derrame e morreu.

Minha família é da igreja batista tradicional, e no templo que frequentávamos eu fazia aula de música. Além disso, nos incentivavam a estudar e a praticar esportes, então entrava em todos os cursos e projetos sociais que apareciam.

Mas fiquei revoltada com a morte do meu pai porque éramos muito amigos. No dia do enterro, em Irajá, quando o vi, fiquei desestabilizada e saí correndo. Peguei um ônibus atrás do outro e não queria mais voltar para casa. Larguei estudos, cursos, tudo.

A relação com a minha mãe não era boa. A gente discutia por tudo, e estava em uma fase muito difícil da adolescência. Ela chegou a me colocar para fora de casa por ter trocado aula de piano por violino. E não deixava eu e meu irmão, que éramos os mais novos, a praticar esportes em um projeto do bairro. Mas a terapia me ajudou a reconhecer que deve ter sido muito difícil para ela perder um marido aos 42 anos e com quatro filhos para criar.

Passei a dormir no Aterro do Flamengo, na zona sul, porque meu pai levava muito a gente ao Monumento dos Pracinhas para ver os barcos ancorados.

Eu ficava com o grupo da Candelária, mas eles criavam muito problema para os lojistas no centro da cidade. Eu já tinha discernimento do que era errado, então muitas vezes andava sozinha para não ser pega por eles nem com eles.

Também preferia dormir sozinha, ao lado de bares que ficavam 24h abertos, porque com o movimento pensava que não seria violentada. Nunca consegui relaxar, deitar e dormir por medo de tomar uma tijolada na cabeça ou dos anjos da noite, que eram seguranças da rua que davam porrada à toa.

Elenice Nogueira ilustrou livros, capa de CD e lançou sua própria obra
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Reencontro com a arte

Na hora em que aconteceu a chacina, estava a poucos metros dali, conversando com os taxistas do aeroporto Santos Dumont. Quando cheguei, vi a movimentação da polícia e fui embora porque percebi o terror e fiquei com medo que dissessem que eu fazia parte do grupo assassinado.

Fui para a mureta da Urca (zona sul) e voltei três dias depois. Ainda tinha marca de sangue no chão. Pensei muito que poderia estar ali na hora que tudo aconteceu.

Depois do episódio, descobri que um grupo de uma igreja ensaiava canto erudito em uma escola inglesa que fica rua Real Grandeza, em Botafogo, e ao final eles distribuíam lanches, então passei a cantar lá também.

Ali conheci uma jornalista alemã, a Astrid Prange, que estava no Brasil pelo jornal “Deutsche Welle”, e que fez uma entrevista com a Yvonne Bezerra (primeira defensora dos direitos humanos a chegar à Cinelândia após a chacina e que acolheu os sobreviventes). Essa jornalista passou a me dar aulas de violino.

Ela não sabia que eu morava na rua. Eu dormia na sua casa às segundas após o ensaio do coral, e na manhã seguinte ela me dava aula. Eu chegava a passar mal no café da manhã porque ela servia croissant, suco, e como ficava horas sem comer, quando a comida caía no estômago vazio, tinha vontade de desmaiar. Acho que meu corpo levava um susto.

Já fiquei sete dias me alimentando somente dos frutos das amendoeiras de rua. Mas somente uma amiga sabia da minha situação. Vez ou outra eu visitava alguma família amiga e acabava dormindo por lá, então eu aproveitava para tomar banho e lavar a roupa. Quando você está suja não consegue entrar em lugar nenhum, nem em bar para usar o banheiro.

Graças a Deus participei de projetos sociais até a quinta série. E estudei em uma escola municipal em Acari onde se ensinava técnicas agrícolas e comerciais, artes industriais, educação para o lar e artes. Por isso, nunca fiz nada errado. Até na antiga Funabem (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor), onde fiquei por oito meses, estudei. Fiz cursos como lapidação em pedra. E nunca sofri violência.

Elenice Nogueira foi convidada para tomar chá na Casa Branca, nos EUA
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Das ruas para duas universidades de renome

A Astrid tinha uma banda de jazz, e ao me ver rabiscar em um papel, me pediu para ilustrar a capa do CD do seu grupo. Ela pagou ainda um curso de desenho e me fez voltar a estudar. Mesmo não falando bem português, me ensinou química e física, matérias que eu tinha mais dificuldade.

Completei os estudos e passei em artes plásticas na UFRJ e história da arte na UERJ. E voltei para a casa da minha mãe. Mas só consegui estudar nas duas por um ano. Saía cedo de casa com pasta de desenho de um lado e violino de outro. Além disso, não tinha dinheiro e esperava um único motorista de ônibus que me levava para o Fundão (onde fica a UFRJ) sem me cobrar a passagem. Sentia fome o dia inteiro, e muitas vezes, na volta, já de madrugada, dormia no ônibus e passava do ponto onde deveria descer.

A Astrid também pagou a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, e ali me tornei assistente do Orlando Mollica [artista plástico]. Até que os alunos começaram a me procurar mais que a ele. Um dia, cheguei para dar aula e ele não deixou. Disse que quem mandava era ele.

Mas me indicaram um curso no próprio Parque Lage, da Maria do Carmo Secco [pintora e desenhista] e fui sua assistente por um bom tempo.

Elenice Nogueira tem 19 obras numa exposição permanente do Banco Mundial, em Washington DC (EUA)
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Chá com a primeira-dama americana

Uma vez, a Yvonne foi com a rainha Silvia (da Suécia) ao encontro de representantes do Banco Mundial nos Estados Unidos, e levou meus trabalhos com recorte de jornal e pinturas que fiz sobre tragédias como a chacina de Vigário Geral, a de Madureira e a da Candelária. Dezenove dessas obras fazem parte do acervo permanente da instituição, em Washington DC.

E em 1999 fui convidada pelo Banco para ir aos Estados Unidos. Conheci museus e a cidade por quase 20 dias e fui chamada pela então primeira-dama Hillary Clinton para tomar um chá. Como ela soube de mim, não sei.

Eu nem sabia o que era a Casa Branca. Um dia antes desse encontro, cheguei a visitar o local e achei legal um lugar onde todos queriam tirar foto.

A visita durou uns quatro minutos. Foi numa sala que tem uma lareira. Quando a vejo pela TV, conto que fui lá. Levei para ela quatro aquarelas. Ela queria saber como era o Brasil e o que eu achava das crianças em área de risco, e também o que eu pensava sobre o futuro delas. Não lembro o que respondi.

Na volta ao Brasil, fui fazer licenciatura em educação artística no Bennett, com patrocínio de uma estatal, e comecei a ser mais chamada para exposições. A Astrid arrumou trabalhos na Alemanha, e eu ia para lá duas vezes por ano. Visitava cidades e dava aula em escolas com ajuda de um tradutor.

“A gente tem que escolher qual batalha enfrentar”

Aqui no Brasil, as coisas funcionam diferente, porque primeiro olham sua cor e o sobrenome. Você não vê artista plástico negro famoso.

É muito difícil ser negro num país em que a maioria tem essa cor. Fui a única negra a estudar no Parque Lage há mais de uma década. Os outros pretos eram faxineiros.

Apesar disso hoje consigo me sustentar com a minha arte. Ilustrei incontáveis livros, e tenho um publicado, “O velho tênis novo”, que já ficou entre oito obras de autores negros mais vendidas no Brasil.

“Não quero voltar para a rua. E hoje, mais do que nunca, tenho que correr atrás. Vendo minha arte pelo boca a boca, nas redes.”

Ainda assim sofro racismo o tempo inteiro, maior e pior do que antes. Sinto que as pessoas escancaram mais o preconceito. Antes, ninguém percebia minha presença, e hoje a percepção é a de que estou em lugares que não são para ser ocupados por pessoas pretas. Mas chego com a cabeça erguida. Minha resposta ao racismo é fazer bem meu trabalho e sair satisfeita com meu desempenho. Confio muito no que faço.

Meu trabalho estará sempre voltado às crianças. E quando vou falar em escolas, dou dicas de como ganhar dinheiro, falo que não precisa ir para o caminho errado, mostro os que eu percorri.

A superação é diária, ainda mais por ser negra, artista, ativista e gay. A vida é uma batalha e a gente tem que escolher qual enfrentar, senão vira um inferno.

E as pessoas não ligam. Então você tem que escolher entre ser feliz ou ter razão. Não sou especial, apenas fiz escolhas priorizando as cores, e conheci o mundo com minha arte.”

Elenice Nogueira, artista plástica e ilustradora, do Rio de Janeiro.

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