Quando tinha 18 anos, Leslee Udwin foi convidada por um homem charmoso que conheceu para ir a uma festa na casa dele. Chegou lá e estranhou um pouco o lugar isolado. Os convidados estavam atrasados, ele dizia. Ninguém apareceu e Leslee foi estuprada naquela noite.
Por Renata Mendonça Do Uol
O caso aconteceu na África do Sul, mas a cineasta pensa que poderia ter sido em qualquer lugar do mundo. Na época, voltou para casa com a certeza de que a culpa havia sido dela. “Eu fiquei 20 anos sem contar isso para absolutamente ninguém, me culpando por não ter virado as costas e ido embora no momento em que vi que não havia ninguém na casa”, disse à BBC Brasil.
Um bom tempo depois, a israelense-britânica se surpreendeu com o caso de um estupro coletivo na Índia que chocou o mundo. Jyoti Singh, 23 anos, voltava do cinema com um amigo por volta de 20h30 em Nova Déli, quando foi violentada por seis homens dentro de um ônibus.
O crime repercutiu e gerou protestos pedindo justiça e direitos iguais para mulheres na Índia –e Leslee decidiu mergulhar em uma jornada “traumática”, como ela descreve, para “amplificar a voz daquelas mulheres” em um documentário sobre o caso.
“Meu objetivo sempre foi usar isso como uma ferramenta poderosa de mudança. Queria levantar essa questão dos direitos de meninas e mulheres no mundo. Porque não é uma coisa da Índia”, disse. “Todo país do mundo sofre dessa doença que é a desigualdade de gênero. Nós precisamos agir, entender nossa responsabilidade nisso.”
O filme “India’s Daughter” (“Filha da Índia”, em português) estreou em março internacionalmente e chegou ao Brasil nesta semana, com uma exibição pública em São Paulo, promovida pela ONG Plan International Brasil no lançamento da campanha “Quanto Custa a Violência Sexual Contra Meninas?”.
Para produzi-lo, a cineasta gravou 32 horas de entrevista com os estupradores da menina na Índia e outros agressores sexuais. Ela achava que encontraria “monstros” ou psicopatas, mas se surpreendeu ao concluir que todos eles eram “homens normais”.
“Juro que nem por um segundo das entrevistas eu senti um pingo de raiva. Por que não? Pela mesma razão que esses homens não conseguem sentir nenhum remorso”, relata.
“Ficou óbvio que esses homens foram programados para pensar o que pensam e agir como agem. Eles não são independentes, são conduzidos a pensar dessa maneira desde que nascem.”
“Temos o que merecemos”
Leslee Udwin conta que precisou fazer algumas “entrevistas-teste” (que não entrariam no filme) com outros estupradores para treinar sua “sanidade” antes de enfrentar os agressores de Singh. E foi um deles que a fez identificar, ao mesmo tempo, o problema que gerava tantos casos de estupro, e a solução para acabar com eles.
O homem em questão havia estuprado uma menina de cinco anos. Ele descreveu tudo o que fez com ela e como “tampou sua boca para abafar os gritos com o cuidado de não tampar seu nariz para que ela pudesse se manter viva”. A garota, como ele apontou, era da altura do seu joelho. Leslee lhe perguntou se ainda pensava nela e no que tinha feito. “Sim. E toda vez que penso, preciso ir ao banheiro”, ele respondeu.
A falta de arrependimento demonstrada por ele fez com que a cineasta entendesse a cultura do estupro.
“Se você desvaloriza esse ser humano (mulher), se você aprende que elas não têm nenhum valor comparadas a você (homem), é claro que você vai tratá-las dessa forma. O que você espera?”, questiona. “Nós somos responsáveis pelas atitudes deles, nós motivamos as atitudes deles. E nós como sociedade merecemos isso.”
Leslee reforça que o caso retratado no filme faz parte de uma questão mundial –a desvalorização da mulher–, que precisa ser combatida desde cedo.
“É só uma questão do grau de intensidade do problema. Em alguns lugares, estamos lidando com a falta de representatividade das mulheres no comando das empresas ou as diferenças de salário das mulheres, e em outros, estamos falando da restrição dos direitos da mulher, como na Arábia Saudita, onde mulheres não podem dirigir um carro”.
Solução
Foram tantos “choques” durante a produção do filme que, em um determinado momento, Leslee admite que quis abandonar o barco. Em pânico por achar que aquilo era doloroso demais, a cineasta se inspirou na filha de 13 anos para seguir com o projeto.
“Ela me disse algo que nunca vou esquecer: ‘você não está sozinha. Eu e minha geração inteira estamos com você nessa’.”
Não fosse isso, o filme “A Filha da Índia” não teria saído e, consequentemente, não teria provocado reflexão nas milhões de pessoas que o assistiram no mundo todo, segundo ela. Mesmo banido na Índia, o documentário já foi visto por 1,6 milhão de pessoas no país, horas depois que foi lançado na internet. Mas só isso, Leslee reforça, não é o suficiente.
Para combater o problema, ela defende uma mudança estrutural e global na educação, valorizando respeito, direitos humanos e igualdade de gênero nas escolas.
“Quando crianças chegam a uma certa idade, que seria seis anos, você não pode mudar os estereótipos que elas já aprenderam”, opina.
Para lutar por essas mudanças, Leslee se aliou à ONU como consultora de direitos humanos e está ajudando na formulação de um novo currículo escolar com alterações de conceitos básicos da educação.
“Precisamos começar cedo com uma nova geração. Ensinar respeito na escola para que elas possam aprender a valorizar outros seres humanos. Nós não estamos ensinando crianças a pensar, a sentir, a ter empatia, vendo o mundo sob o ponto de vista do outro”, diz.
E ela ainda faz um apelo para as mulheres. “Imploro para quem passou por isso (violência sexual) que fale, porque é muito importante. A culpa é deles, a vergonha é toda deles. É um erro e é de uma maldade absurda colocar a culpa disso na mulher pelo que ela estava fazendo ou usando. É nojento e absurdo que isso ainda aconteça. E nós, como mulheres, precisamos reagir a isso.”