A mídia manobra a indignação contra a corrupção conforme seu interesse, diz o cientista político João Feres Jr., novo colunista do site
Por Sergio Lirio, da Carta Capital
Um dos instrumentos mais precisos de medição do viés dos meios de comunicação foi criado por João Feres Jr., professor de Ciência Política da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. O “Manchetômetro” é irrefutável em sua apresentação objetiva da cobertura da mídia de temas como política e economia. Por consequência, costuma ser ignorado pelos veículos que dominam a produção de informação no Brasil. Doutor pela Universidade City University of New Yorkde Nova York, Feres Jr. é também editor do boletim Congresso em Notas, que semanalmente divulga notícias sobre o Legislativo federal, particularmente aquelas relevantes às políticas de sociais e aos direitos humanos e de minorias. Feres Jr. terá no site de CartaCapital espaço para comentar este e outros assuntos. O acadêmico acaba de se juntar ao corpo de colunistas da versão digital da revista, uma das novidades do novo projeto editorial. “Sofremos, no passado e no presente, uma escandalosa manipulação midiática”, afirma na entrevista a seguir.
CartaCapital: Quais mudanças o senhor você percebe no comportamento da mídia quando se comparam os governos Dilma Rousseff e Michel Temer?
João Feres Jr.: A diferença é brutal e também imoral e antiética da perspectiva das práticas jornalísticas. No Manchetômetro, analisamos as coberturas da Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e Jornal Nacional. Só para citarmos um exemplo recente: Quando se toma a cobertura agregada do governo federal desses quatro meios do governo federal, ela despencou de 400 matérias negativas em março e abril de 2016 para 200 em maio, isto é, exatamente no mês em que Dilma Rousseff foi afastada. Ou seja, caiu pela metade. E esse número continuou a diminuir no governo de Michel Temer até atingir 55 em outubro daquele ano, isso com o País em plena crise econômica e com alto grau de conflito político. Esses dados mostram que a chamada grande mídia brasileira tem lado e toma partido de maneira sistemática e reiterada. Basta computar o que publicam. É isso que fazemos no Manchetômetro.
CC: Só?
JFJ: Não. Ao se considerar os textos neutros e favoráveis, sob Dilma o padrão era esses meios publicarem de duas a três vezes mais matérias contrárias ao governo do que neutras, e quase nenhuma favorável. Bastou Temer ser alçado à presidência interina para o número de neutras empatar com aquele de contrárias já em maio e o ultrapassar com larga margem em julho. Não bastasse, o número de favoráveis empatou e até ultrapassou o de contrárias, algo inédito na série histórica da cobertura desde que o Manchetômetro passou a analisa-la, no início de 2014. O número de favoráveis, seja para políticos, partidos ou instituições, é geralmente pequeno e muito inferior ao de contrárias e neutras. Em suma, sofremos, no passado e no presente, uma escandalosa manipulação midiática.
CC: É possível identificar o uso da “pós-verdade”, para citar o termo consagrado pela Universidade de Oxford, no Brasil?
JFJ: No Manchetômetro não fazemos checagem de fatos noticiados, assim não dá para estabelecer a veracidade do que é publicado pela mídia. É possível, contudo, captar outras estratégias jornalísticas com efeitos manipulativos similares à “pós-verdade”, como o agendamento e o enquadramento das matérias. O agendamento é a prática de escolha dos temas a serem noticiados. Muitas notícias favoráveis no âmbito da economia e da política durante os governos de Dilma foram, por exemplo, excluídas ou subnoticiadas, enquanto que as negativas eram superexpostas e exploradas nos detalhes. A prática de agendamento altamente enviesado contribuiu enormemente para a intensificação da crise política e para a percepção de crise econômica, a meu ver. O enquadramento é a interpretação que a notícia dá ao fato. O exemplo mais claro é o da cobertura da corrupção, sempre a jogar a responsabilidade no colo do PT. É também impossível compreender o surgimento do antipetismo hidrófobo de massas sem a contribuição do enquadramento que a grande mídia tem feito da corrupção política no País.
Feres Jr., novo colunista
CC: Tenta-se criar um clima de otimismo em relação à economia. A mídia, que alimentou a desconfiança durante o governo Dilma, seria capaz por si só de injetar euforia na população?
JFJ: Estou escrevendo um artigo acadêmico examinando o possível efeito da cobertura de mídia da economia na percepção do estado da economia pela população. Os economistas neoliberais pregam que as expectativas dos agentes, particularmente aquelas dos empresários, guiam a dinâmica da economia. Acho bobagem. Muitos trabalhos mostram que a cobertura da imprensa é capaz de alterar as expectativas dos agentes, mas isso não quer dizer que ela também altera significativamente as decisões que os empresários tomam. Em outras palavras, um empresário não decide investir simplesmente por ler a coluna da Míriam Leitão ou do Carlos Alberto Sardenberg, mas quando detecta crescimento efetivo da demanda. A percepção do estado da economia da população em geral é altamente porosa à cobertura midiática e isso pode ter efeitos políticos concretos na hora do voto, ou mesmo na falta de reação a um golpe parlamentar, como o que acabamos de sofrer.
CC: Por que as denúncias de corrupção não causam mais a indignação de quem saiu às ruas a favor do impeachment de Dilma Rousseff?
JFJ: Aí está a evidência sólida de que a mídia é em boa medida responsável por instilar e ao mesmo tempo construir narrativamente a indignação popular contra a corrupção. Quando ela não está a soprar as brasas dos movimentos anticorrupção, seus simpatizantes não vão às ruas. A mídia brasileira tem feito uma campanha incansável de reduzir a política à questão da corrupção desde pelo menos o mensalão. A cobertura ataca as instituições que trazem a marca do voto, Executivo e Legislativo, com forte viés contra o PT. A não ser os corruptos, todo mundo é contra a corrupção. Mas essa campanha fez com que muita gente passasse a ver o PT como a encarnação da corrupção. Conseguiram seu primeiro objetivo, o impeachment de Dilma, mas o custo foi muito alto: a desmoralização e desvalorização da democracia representativa brasileira.
CC: O que esperar dos próximos meses? O governo Temer conseguirá chegar até as eleições de 2018? Teremos eleições em 2018?
JFJ: Perguntas difíceis. Acho que o segundo objetivo da mídia é cassar os direitos políticos de Lula e contra ele e sua família movem uma campanha solerte e incansável, que novamente viola todas as práticas do bom jornalismo. Por outro lado, Temer tem se mostrado extremamente muito incapaz na comunicação com o público, mas hábil na condução de sua base de apoio parlamentar. Como sua agenda de reformas é extremamente impopular, quanto mais nos aproximamos das eleições de 2018, mais os deputados e senadores que o apoiam vão ter dificuldade de justificar esse apoio para suas bases. O mesmo para os partidos governistas. Exatamente por isso, há pressa em aprovar as reformas, pois o calendário eleitoral é implacável. A não ser que deem um golpe institucional e alterem o sistema político ou o sistema eleitoral de maneira a diminuir a influência do voto popular, e é isso o que está em curso exatamente nesse momento com toda essa conversa de reforma política.
“A receita fiscalista de Temer para debelar a crise nunca funcionou em nenhum país do mundo”
CC: A penúria dos estados e municípios provoca greves, tumultos e violência. Há riscos de uma convulsão social com o agravamento da crise econômica?
JFJ: Não gosto de fazer previsões. Sempre há esse risco, mas também acho que a mídia é totalmente “vendida” à causa do neoliberalismo e tradicionalmente avessa a movimentos sociais e manifestações populares, com exceção de junho de 2013, quando de repente sacou a sua utilidade contra Dilma e o PT. A receita fiscalista de Temer para debelar a crise econômica nunca funcionou em nenhum país do mundo e não é agora, aqui, que vai funcionar. Mas isso não quer dizer necessariamente que o povo vá se insurgir contra seu governo nas ruas.
CC: Por que Temer, um dos líderes do PMDB, faz um governo tucano? Ou melhor, por que o PMDB, partido capilar, decentralizado, que tradicionalmente depende muito da máquina administrativa dos governos, e, portanto, do vigor do gasto público, agora apoia uma política de redução brutal desse gasto?
JFJ: Isso vai contra os interesses de sua imensa base de vereadores, prefeitos, deputados estaduais, governadores e mesmo de deputados federais. Hoje as propagandas do partido se dedicam a atacar o PT e a defender políticas neoliberais. Não tenho resposta para essas questões, mas desconfio que o aspecto vampiresco do presidente não seja somente uma galhofa, mas tenha um sentido metafórico mais profundo. Os pemedebistas estão se transformando em mortos vivos, e servindo a um senhor que é em tudo, menos na aparência mais externa, um tucano.