“Não pretendo nada /nem flores, louvores, triunfos/nada de nada/Somente um protesto/uma brecha no muro/e fazer ecoar/com voz surda que seja/e sem outro valor/o que se esconde no peito/no fundo da alma/de milhões de sufocados.” Os versos do poema ‘O País de uma Nota Só’, de Carlos Marighella, abriram o ato em memória do guerrilheiro, realizado na manhã desta terça-feira (4) em Salvador (BA).
No dia em que se completam 56 anos do seu assassinato por agentes da ditadura militar, amigos, representantes de movimentos populares e parlamentares se reuniram em frente ao túmulo do dirigente, no Cemitério Quintas dos Lázaros, para resgatar a história e apontar a atualidade da luta de Marighella.
“Voltar a Marighella é exatamente recuperar essa perspectiva da utopia, do sonho, da entrega, do desejo de ver, de fato, um mundo melhor para todos nós”, destacou o vereador Hamilton Assis (Psol), representando a bancada de oposição da Câmara Municipal de Salvador.

Já Karla Oliveira, do setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), salienta a importância de recuperar a memória e o legado do guerrilheiro para se pensar a resistência popular ainda hoje.
“Lembrar do Marighella é lembrar de qual a sua posição sobre o massacre que aconteceu no Rio de Janeiro, seu posicionamento sobre o genocídio na Palestina, sobre o massacre que acontece todos os dias nas periferias de Salvador, de toda a Bahia, de todo o país. Não só nas periferias, mas também na zona rural, com as mulheres, com o nosso povo quilombola, sem terra. E é principalmente lembrar que a gente não tem tempo de ter medo.”

‘Sou apenas um homem negro baiano’
“Carlos Marighella era um homem simples, um homem bom, um homem muito estudioso. E acima de tudo, era um pesquisador, não no sentido de ter um bocado de livros para ler, mas no sentido de observar. Observar a realidade, as pessoas, conversava como se cada um fosse trazer para ele iluminações, prestava uma atenção enorme”, relembra a professora Teresa Vilaça, amiga de Marighella e ex-presa política.
Nascido no dia 5 de dezembro de 1911, em Salvador, Marighella foi fundador e dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN), uma das principais organizações que atuaram na luta armada contra a ditadura militar. Considerado o principal inimigo do regime ditatorial iniciado em 1964, também vivenciou a repressão do Estado Novo (1937-1945), de Getúlio Vargas.
Em 1946, chegou a ser eleito deputado federal constituinte pelo PCB baiano, mas pouco depois teve seu mandato cassado junto aos demais deputados eleitos pelo Partido Comunista do Brasil. Em julho de 1968, após romper com o PCB, fundou a ALN, dando início às operações de guerrilha urbana no país. Foi assassinado em 4 de novembro de 1969, numa emboscada armada por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em São Paulo, sob coordenação do delegado Sérgio Paranhos Fleury.

A história de Marighella se soma ao legado de luta do povo negro baiano, que historicamente resiste às diversas formas de opressão, como também aponta Hamilton Assis.
“Quando perguntado quem era Marighella, ele faz uma afirmação que, para mim, é uma fonte de inspiração. Ele diz: ‘eu sou apenas um homem negro baiano’. E é importante a gente entender o sentido disso porque, de certa forma, os escravizados da Bahia eram vistos no sul como indolentes, preguiçosos, e essa cultura da estigmatização ainda existe até hoje. Mas a história dos baianos, efetivamente, é uma história de luta, de resistência, de construção de revoltas”, destaca.
“[Revolta dos] Malês, [Revolta dos] Búzios, Marighella, Luiz Gama, diversos outros companheiros e companheiras fizeram também esse ciclo do ponto de vista de não aceitar. Lutaram pela independência, lutaram por uma sociedade justa e dedicaram suas vidas a isso, cada um a sua forma”, completou Rodrigo Pereira, da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen).
Legado de luta
Com canções, flores e bandeiras, os presentes também saudaram a memória de Clara Charf, histórica militante e viúva de Marighella, que faleceu nessa segunda-feira (3), aos 100 anos.
“Carlos Marighella foi, é e segue sendo inspiração de luta para muitos e muitos jovens que sonham em construir um país e um mundo mais justo, fraterno e igualitário. E hoje estamos aqui em reverência também a nossa companheira Clara, que nos deixou ontem parece que meio que combinado com Carlinhos, porque hoje a gente homenageia a história e a vida de Marighella, mas também a gente homenageia a história e a vida desta mulher guerreira e lutadora do nosso povo, que é Clara Charf “, ressalta Tassio Brito, presidente estadual do Partido dos Trabalhadores (PT).
Arno Brichta, amigo e companheiro de militância de Marighella durante a ditadura militar, aponta que o legado do guerrilheiro segue firme e orientando o compromisso desta e das futuras gerações na construção de uma sociedade mais justa.
“Enquanto não tivermos justiça social, tanto pregada, tanto lutada e defendida por Marighella, continuaremos unidos em torno desse ideal. Não só com o próprio Carlos Marighella, com suas ideias, como com aqueles que continuam seguindo esses princípios básicos dos quais nós não abrimos mão.”