Sul-africanos celebram a vida de Mandela e a que ele lhes ofereceu

Da rua, um telhado branco surge acima de um muro amarelo e este esconde a casa onde Nelson Mandela vivia com Graça Machel. Ao longo do muro, um portão castanho de onde, na quinta-feira, saiu o caixão do herói da luta contra o apartheid. O caixão coberto pela bandeira nacional, seguiu num carro escoltado, até à morgue militar na capital Pretória, enquanto pombas brancas eram largadas no céu.

Nos dias que seguiram, acenderam-se velas em missas e vigílias de despedida, em muitas cidades sul-africanas, como Pretória, que esta terça-feira celebrou Mandela no Parlamento, ou Joanesburgo, que acolhe esta terça-feira uma gigante cerimónia no Estádio FNB – o Soccer City – do Soweto.

Neste estádio, onde se realizou a final do Campeonato do Mundo de Futebol em 2010, quando Mandela apareceu, pela última vez, em público, são esperadas perto de 100 mil pessoas, além das muitas que deverão assistir à cerimónia através de grandes ecrãs colocados no exterior.

Até lá, todos os caminhos de quem procura homenagear Mandela vão dar à casa onde morou, depois de deixar a presidência em 1999, no sofisticado bairro residencial de Houghton.

Vem gente de todo o lado, dos bairros muito pobres para este que é um dos mais ricos, vêm a pé, sozinhas, em família ou em pequenos grupos, com crianças ao colo ou pela mão, brancas, negras, mulatas, indianas. Quem tem carro, deixa-o longe, por ordem de segurança dada pela polícia.

Lado a lado caminham judeus e muçulmanos, hindus, cristãos, ateus e animistas. Casais mistos, e pessoas de todas as idades, jovens que tiram fotografias, sorriem sorrisos rasgados, e duas velhinhas, muito velhinhas, que se apoiam uma na outra porque só assim conseguem caminhar.

A tristeza transformou-se em alegria de poder estar aqui. Este é um momento de celebração e de reconhecimento por algo indizível e grandioso.

Por diferentes razões, vêm agradecer a Mandela. Ele deu-lhes uma vida melhor, ouve-se mais do que uma vez. A uns, libertou-os da consciência da cor da pele que era pretexto para não serem “ninguém”. A outros, tranquilizou-os do medo de que não seriam aceites numa nova África do Sul onde a maioria negra tivesse finalmente expressão e direito ao voto.

Como Jannie, 39 anos, que ainda se lembra do medo – que só com o tempo, a calma, e o espírito de reconciliação de Mandela desapareceu. Por isso, está aqui. Tira muitas fotografias, com ou sem filhos ao colo. Sorri.

“Queria trazer os meus filhos para que eles um dia saibam que fizeram parte deste momento importante da nossa história. E quis agradecer a Mandela que soube transformar a incerteza de muitos num milagre para todos.”

A acompanhar Jannie está Nelly, 51 anos, que sofreu com o apartheid e veio aqui, também em nome dos pais, “que não puderam ter o futuro” que ela ainda teve.

Cada um celebra a vida de Mandela e a que ele lhes ofereceu. E as amizades que ele, sem saber, lhes fez descobrir. “Nunca teria os amigos que tenho hoje, negros, se não fosse por ele. Vivíamos separados”, diz Bela Hawkins, filha de portugueses vindos da Madeira em 1959, e casada com um sul-africano, e irmã de Paulina Russell. “Agora, vamos a casa uns dos outros, as crianças partilham as mesmas escolas. E os nossos filhos já não vivem a questão da raça”, diz Paulina. Por tudo isto, dizem ambas, “este é um dia histórico”.

Uma banda de música irrompe no meio da pequena multidão que rodeia as ilhas formadas por equipas de televisão que se preparam para os seus directos. Rapule celebra mas também trabalha. Além de máquina fotográfica, trouxe uma mini-impressora e vende os retratos tirados na hora. Retratos que sorriem à frente de uma grande pintura, com Mandela no centro, ao lado de Gandhi, Kennedy, Obama, Lincoln, Churchill e Martin Luther King.

“Mandela foi uma tal fonte de inspiração para toda a gente. Sem ele, provavelmente, este país ainda estaria dividido. E eu não estaria aqui neste momento a falar com uma pessoa de outra raça”, diz Gershom Ramazan, 31 anos.

Toni Sanders tinha a idade que Gershom tem hoje quando Mandela foi libertado. E na clandestinidade, também ela apoiava a luta do Congresso Nacional Africano (ANC) contra o apartheid. Era uma branca do lado dos negros, mas estudante da Universidade de Rhodes, onde, como ela, outros estudantes mais esclarecidos, de Ciência Política, viram logo no fim dos anos 1970 que a política seguido pelo regime do apartheid “não levaria o país a lado nenhum”.

A África do Sul estava isolada internacionalmente e muita gente, mesmo na África do Sul, deixou de acreditar no futuro de um sistema assente na segregação racial, diz.

O memorial que ele desejou

Por isso, Toni Sanders está aqui. Porque este momento, da romaria à casa de Mandela, como esta terça-feira a grande cerimónia no Estádio junto ao Soweto, serão parte da história dos sul-africanos.

A tarde avança, mais gente chega, com uma flor apenas, ou vários ramos, com crachás (a imitar medalhas) de Mandela ao peito. O verde, vermelho, amarelo e preto da bandeira da África do Sul, sobressaem por entre os sorrisos de quem caminha ou do próprio Mandela em dezenas de retratos reproduzidos, no passeio, estrada fora.

E uns corpos embalam-se numa música de celebração, ora tradicional zulu ou xhosa, ora instrumental, tocada por tambores e trombones, trompetes e saxofones. O dia caminha para a noite e a emoção no ar cresce.

“Estas pessoas não vão dormir”, diz Boya, que cresceu sob o jugo do apartheid, e tinha 27 anos quando Mandela foi libertado em 1990. “Fomos oprimidos durante demasiado tempo”, diz antes de confessar que o tema o perturba. “Era muito difícil. Chegavam a bater à porta das nossas casas a meio da noite a dizer que estávamos a transgredir. Não éramos ninguém. As coisas mudaram muito porque Mandela incluiu toda a gente. Perdoar é possível, também porque eu sou cristão. O apartheid estava lá mas ficou lá. Não vai voltar a acontecer, disso tenho a certeza. Agora posso olhar para todos os sul-africanos e sentir amizade. Somos como uma grande família. Uma família que tem de agradecer a Mandela o que ele fez.”

O desejo de Mandela, disse o arcebispo anglicano e Nobel da Paz em 1984 Desmond Tutu, num serviço religioso no fim-de-semana na Cidade do Cabo, era que “os próprios sul-africanos fossem o seu memorial”.

Cada um, ergue um memorial, à sua maneira, à porta de casa de Mandela, onde vão depondo flores, velas, peluches, estatuetas de santas ou mensagens, em gestos de veneração. “Obrigada por tudo o que fizeste por nós”, lê-se em mais de uma mensagem.

Num painel a ser entregue à família, qualquer pessoa de qualquer parte do mundo, pode improvisar o que quiser. Nele, se celebra “a grande inspiração” que Mandela representa para todos na África do Sul. Mas também é deixada a promessa de que a África do Sul será o país que Mandela sonhou. “Tata, pode descansar em paz.”

Há quem exprima o lado universal da figura – “Mandela vai comandar o universo ao lado de deus” – que se confundirá com o carácter universal da cerimónia desta terça-feira e que, por instantes, e em nome de Mandela, esquecerá os conflitos entre países de líderes que estarão sentados nas mesmas bancadas. A segurança será reforçada para os dignitários que se juntarão aos populares, também eles, vindos de fora de Joanesburgo.

Seguirão então, em grandes grupos, nos transportes públicos gratuitos postos à disposição pelo governo provincial. Seguirão às dezenas de milhares, para o maior funeral da História, escreve o Sunday Times, desde que em 1965 morreu Winston Churchill.

 

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