Na ausência do homenageado Tim Maia (1942-1998), ninguém melhor para representá-lo na festa do Prêmio da Música Brasileira — cuja edição 2024 acontece nesta quarta-feira (12), a partir das 20h45, no Theatro Municipal do Rio, com transmissão do Canal Brasil, Globosat + Canais ao Vivo e canal do Prêmio da Música Brasileira no YouTube — do que Tony Tornado.
— Todo doidão tem que ter um careta por perto, e eu sempre fui o careta de plantão — gabava-se, aos inacreditáveis 94 anos de idade, o cantor, ator e lenda da black music nacional, ao chegar no começo da tarde de segunda-feira (10) ao clube Manouche, no Jockey Club Brasileiro, para o ensaio dos números musicais com as canções do amigo, a quem “segurava nas horas boas e nas horas ruins” e ao qual até hoje costuma se referir, com toda a intimidade, como o “Sebastião” (Rodrigues Maia, seu nome verdadeiro). — Às vezes, o Tim ficava irascível, por causa daquele gênio dele, mas, quando ele ficava bom, era uma pessoa boa de se lidar.
Num estilo que o Síndico certamente aprovaria, Tony já chegou dizendo que queria mudar a música que lhe estava destinada no roteiro (“Gostava tanto de você”) por “A festa do Santo Reis”. A sinuca de bico foi resolvida pelo diretor musical do espetáculo, Pretinho da Serrinha, que o acomodou em “Sossego”, música de suingue mais black, que o cantor diz ter visto nascer na casa de Tim (“essa música não era nada, ele inventou tudo na hora”).
Na hora do ensaio, Tony estava à vontade: contou histórias (“conheci Sebastião nos Estados Unidos”), reclamou com José Maurício Machline (o criador do Prêmio da Música Brasileira) nunca ter sido convidado para o Prêmio Sharp (a primeira versão do PMB, iniciado em 1987), deu uma palinha do seu clássico “BR-3”, sugeriu alterações no arranjo e, na hora do “Sossego”, tudo deu certo: ele caprichou nas suas intervenções jamesbrownianas e não deixou de lado o “e um quilo do bom” que Tim costumava incluir nas versões ao vivo.
— Gosto de todas as músicas do Tim, principalmente as que eram do Cassiano (como “Primavera” e “Eu amo você”). Mas, pra não ficar legal, eu prefiro não cantar — justificava-se Tony Tornado. — O Cassiano ficava puto porque o Tim dava na veia da doméstica, fazia a coisa mesmo para vender. Ele dava a música de um jeito e o Tim cantava de outro. Mas, se fosse fazer as ondas do Cassi, não tinha acontecido nada com o Tim!
Machline também conheceu bem Tim Maia, vencedor de vários prêmios Sharp, um dos quais — em uma certa ocasião da qual ele hoje ri, mas que na hora lhe deu alguns arrepios — o cantor recebeu com o seguinte discurso: “Quero agradecer muito à Sharp, mas eu ganhei dinheiro mesmo foi com a Mitsubishi, porque fiz um comercial para eles!”
— Tim Maia era uma pessoa doida em todos os sentidos da loucura. Mas bastava entendê-lo artisticamente que tudo acontecia — ensina o mentor e diretor do Prêmio da Música Brasileira, para quem essa homenagem a Tim está acontecendo até meio tarde. — Ele é um cara atemporal, suas músicas são referências absolutas, em festas de debutantes ou aniversários de 80 anos, ele passa por todas as gerações. O que o Tim fez pela fixação da música black brasileira é indiscutível. E a voz dele era de impacto mortal.
Desta vez, a enrascada em que Tim Maia pôs José Maurício Machline foi das melhores: a de selecionar repertório e intérpretes para o espetáculo musical da premiação desta quarta, que terá como apresentadora a atriz Regina Casé. Serão ao todo 11 números com 29 artistas — um time que, se não conta com a presença de alguns dos velhos camaradas de Tim (como os cantores Hyldon, Fábio e Carlos Dafé), ao menos oferece, segundo Machline, “a oportunidade de mostrar o Brasil em sua diversidade de ritmos, de estilos, de formas e de pensamentos”.
Veterana dos teatros, a cantora e pianista Cida Moreira divide por exemplo com o rapper Rico Dalasam uma dramática interpretação de “Me dê motivo”, clássico da dor de corno do cantor.
— O Tim era o jeito que cantava e falava, era aquele vozeirão — acredita Cida.
Já Rico, que inseriu na interpretação um poema seu, chama a atenção para a força que Tim dava às palavras:
— Conseguimos nos encontrar como dois artistas que elaboram subjetividades de homens pretos. O Tim propôs novos códigos, uma combinação única em seu tempo. A continuidade pode estar em todos os outros garotos que chegam tentando falar do que sentem, com força e intensidade.
Para Carlinhos Brown (a quem coube um “Réu confesso” com Larissa Luz e um “Do Leme ao Pontal” com Larissa e o rapper Hiran), a lembrança mais forte é a de um Tim Maia que, quando cantava uma música romântica, “os homens viravam a cara e disfarçavam para não chorar”.
— Tim não é só um cantor, ele é um artista plástico que instalou em nós uma proposta de canto brasileiro, de canto para fora e de canto festivo. É fácil cantar Tim Maia, porque ele tem uma obra verdadeira e muito familiar — analisa. — Ele chegou quando tudo era mato e saiu não descapinando, porque ele era um preservador da natureza, mas plantando florestas nos corações.
Para ilustrar bem o que José Maurício Machline pensou como representação da diversidade da música brasileira na festa do Municipal, está lá o “Gostava tanto de você” ensaiado na segunda-feira. O samba-soul do repertório de Tim Maia reúne a revelação do rap e trap baiano Yan Cloud, o patrimônio soteropolitano dos blocos afro Lazzo Matumbi, o expoente do rap brasileiro Criolo e Jota.Pê, jovem talento de Osasco (SP) que estreia este ano no prêmio concorrendo a melhor intérprete de MPB.
— Caras como Tim Maia você tem que celebrar sempre, a toda hora, porque é documento para a eternidade. Ele faz parte da vida do brasileiro, é alguém que faz parte da família, que vai além da música — atesta Criolo. — E cada junção que está interpretando cada canção (na festa do prêmio) traz os sabores desse nosso Brasil com os quais a gente está todo dia se deliciando, essas novas histórias, novas vozes, novas temperaturas.
Jota.Pê se recorda que aos 5 anos de idade, quando conseguiu abrir pela primeira vez o tocador de CD dos pais, encontrou dois discos, um de Tim Maia e um de Marisa Monte:
— É muito especial anos depois, já trabalhando com música, ser convidado para cantar Tim com tantos artistas incríveis. Como artista preto também, que começou aos trancos e barrancos para fazer as coisas darem certo, estar aqui cantando Tim é a validação de que alguma coisa de certo eu tô fazendo.
Já Lazzo, que gravou “ Gostava tanto de você” em 1995, se orgulha de ter sido informado de que Tim não só ouviu a faixa como disse: “esse moleque é danado!”:
— Tim Maia trouxe aquela coisa que a gente gostaria de fazer, que é misturar a influência americana com os ritmos brasileiros. Somos filhos desse grande mestre.
Orgulho também tem Sandra De Sá, que em 1983 ganhou de Tim um de seus grandes hits, “Vale tudo” — que desta vez ela divide no palco, num pot-pourri com “Eu eu você, você e eu (juntinhos)”, com as cantoras. A novidade é que os antigos versos foram atualizados para “também pode dançar homem com homem e também mulher com mulher” (“liberou geral!”, acrescenta Sandra, no breque).
— O (produtor) Junior Mendes levou o cassete com “Vale tudo” lá em casa e disse: “Olha, o Tim mandou essa ai pra tu!” E eu: “Tá tirando onda com a minha cara?” Nem ouvi a música, não ia perder tempo. Aí o Junior pegou o telefone e só quando ouvi aquela voz falando “ô, Sandra Sá!” é que eu vi que era o cara mesmo — diverte-se a cantora, animada com a festa. — Quem canta Tim Maia canta de verdade, não é para fazer figuração, nem para ganhar um troco ou engajamento.
Tim Maia para Senador
Outra grande amiga de Tim Maia, Marisa Monte (que já gravou “Chocolate” e “O que me importa”) desta vez sobe ao palco para cantar o clássico “Você”:
— O Tim sempre foi muito carinhoso e generoso comigo. Me contava sobre o Cassiano, sobre seus planos de candidatura para o Senado (pelo Partido Liberal Geral) e sobre a necessidade de união da classe artística (ele queria fundar uma associação, o CU-Cantores Unidos), sobre sua família e suas histórias na música e na vida. Passávamos horas ao telefone, e às vezes eu ia visita-lo no seu apartamento da Barra ou na casa do Recreio onde passávamos tardes inesquecíveis de papo, ouvindo música, tocando e cantando. Tim Maia era inigualável.
Comandante da banda do Prêmio da Música Brasileira, Pretinho da Serrinha admite que foi difícil mexer nos arranjos das músicas do homenageado:
— Com o Tim Maia, não tem introdução e música, é tudo uma coisa só. O jeito foi mexer nas levadas, nos ritmos… mas sem perder o baile, o subúrbio. Porque é isso: se o show não está funcionando, manda um Tim Maia que tu recolhe a galera de volta!