Um massacre cotidiano

 

 

No dia 20 de agosto de 2004, os maiores jornais do Brasil noticiaram o começo daquele que seria conhecido como um dos massacres mais cruéis contra moradores de rua da história do país. Na noite anterior, sete pessoas que dormiam na região central da capital paulista foram golpeadas na cabeça com “objetos contundentes”, segundo os termos do inquérito policial. Três morreram na hora e outras quatro vieram a falecer depois. O ato de violência comoveu a sociedade à época e levou cerca de 5 mil manifestantes à Praça da Sé no dia 21, em solidariedade às vítimas.

Na época, as estatísticas apontavam que havia aproximadamente 2.500 moradores de rua só na zona central de São Paulo. No dia do ato na Sé, um dos feridos no dia 19 faleceu e surgiu mais outro ferido. No dia 22, mais vítimas: dois moradores de rua aparecem mortos na mesma região e outros dois são feridos, encerrando os quatro dias de violência.

Anderson Lopes, que estava em situação de rua na época, lembra que nos dias seguintes ao massacre o clima na rua era de medo. “Havia um medo muito grande porque você não sabia de onde estavam vindo os ataques, aconteciam em vários lugares. A gente ouvia ‘corre pra lá, corre pra cá, vai pro marco zero’, e todo mundo ia pra Praça da Sé. Depois ouvia ‘não, sai todo mundo daí que estão matando aí’. A gente ficava com muito medo, não sabia o que ia acontecer e pra onde ir”, conta.

“A delegacia não sabia direito o que tinha acontecido. Do IML (Instituto Médico Legal) saímos com a informação de que foi usado um objeto tipo uma marreta que fez um bom estrago na cabeça das pessoas. A gente não conseguiu ver os corpos”, conta Alderon Costa, jornalista de O Trecheiro, veículo que trata somente de questões relativas à população em situação de rua. Alderon, que acompanhou todo o processo do massacre, suas consequências jurídicas e os efeitos entre a população de rua, conta que era muito difícil conseguir informações das fontes oficiais sobre as mortes. As testemunhas e sobreviventes do massacre hoje não são mais encontrados nem pela polícia nem pelas próprias pessoas que estavam em situação de rua na época.

Após o crime, dois policiais militares e um segurança clandestino chegaram a ser presos, mas foram liberados em novembro de 2004 por insuficiência de provas. A primeira denúncia do caso, feita pelo MP, acusava os PMs Jayner Aurélio Porfírio, Marcos Martins Garcia, Cleber Bastos Ribeiro, Paulo Cruz Ramos e Renato Alves Artilheiro, e o segurança Francisco Luiz dos Santos de homicídio doloso qualificado (por motivo torpe e impossibilidade de defesa da vítima), tentativa de homicídio e formação de quadrilha. Além disso, apontava o envolvimento dos suspeitos com tráfico de drogas, extorsão de vendedores ambulantes e recebimento de material roubado na região da Praça da Sé.

Em dezembro de 2005, a 1ª Vara do Júri da Capital rejeitou integralmente a denúncia, alegando que não havia provas suficientes contra nenhum dos acusados. No entanto, um ano depois, o Tribunal de Justiça de São Paulo aceitou a denúncia do MP contra Artilheiro e o segurança clandestino pela morte de Maria Baixinha; porém, considerou sem fundamento as denúncias contra os outros quatro policiais e as outras seis mortes ficaram fora do processo.

A Promotoria recorreu da decisão no Superior Tribunal de Justiça (STJ), alegando que deveriam ser processados todos os acusados pela participação nas mortes. Em junho deste ano, o Ministério Público Federal emitiu parecer negando o recurso da promotoria sob o argumento de que o STJ não pode reexaminar as provas. O processo tem como relatora a ministra Laurita Vaz e ainda não há previsão para seu julgamento no STJ.

Para a advogada Michael Nolan, que acompanha o caso desde o início, as provas apresentadas na denúncia são suficientes para a abertura de um processo contra todos os acusados. Além disso, ela afirma que o recurso não deveria ter sido negado, pois não pedia apenas o reexame das provas. Nolan mostra-se confiante quanto ao julgamento do caso da morte de Maria Baixinha, pois “o STJ é uma câmara mais aberta às questões sociais”. Contudo, observa que “só haverá possibilidade de julgamento das outras mortes se surgirem novas provas”. “É muito difícil que isso aconteça cinco anos depois do crime, mas é possível que com a repercussão desses cinco anos de impunidade alguma testemunha tome coragem para falar”, conclui. Anderson não tem a mesma confiança.

“As testemunhas ainda têm muito medo. Elas e até quem sobreviveu ao massacre estão escondidos”, conta.

Caso todos os procedimentos judiciais brasileiros sejam esgotados sem sucesso ou se for comprovada demora injustificada no andamento do caso – como já está sendo estudado -, ele pode ser levado à Organização dos Estados Americanos (OEA), que pode condenar o Brasil a fazer novas investigações e indenizar as famílias das vítimas. “Se a impunidade prevalecer, vai ser dada carta branca para matar a população de rua”, avalia Alderon.

Para o padre Júlio Lancellotti, responsável pelo Vicariato Episcopal do Povo de Rua pela Arquidiocese de São Paulo, a dificuldade de apuração do caso se deve à maneira como ele foi conduzido desde o início. “Os locais do crime não foram preservados, não foi feita perícia; as testemunhas foram desqualificadas por serem moradores de rua; além disso, a polícia trabalhou apenas com hipóteses”.

Para o advogado Ariel de Castro Alves, também foi muito prejudicial “o corporativismo dos policiais, que favorece a impunidade e cria um cenário favorável para que outros crimes ocorram”.

Diante desse cenário, o maior empecilho para o desenvolvimento das investigações é a falta de segurança das testemunhas. Em maio de 2005, a moradora de rua Priscila Machado da Silva, que havia presenciado o assassinato da colega Maria Baixinha no massacre de 2004, foi morta por policiais.

Priscila morava em um cortiço na baixada do Glicério e os policiais que a mataram alegaram que ela havia roubado o celular de um deles. A versão foi contestada por testemunhas oculares do assassinato.
Entre os assassinos de Priscila, um dos suspeitos de envolvimento no massacre: Renato Alves Artilheiro.

Além dele, Fabio de Souza Moreira, Francisco Eduardo da Silva e Sandro Cornélio foram a julgamento pelo crime. Em 2007, Silva foi julgado e condenado a 19 anos e 20 dias de prisão. Em janeiro de 2009, Artilheiro foi condenado a 20 anos de reclusão e Sandro Cornélio a 22 anos e seis meses, por ter sido considerado o responsável pelos disparos que mataram a vítima. Moreira foi absolvido.

Triste rotina “Desde 2004, as políticas públicas para a população de rua não avançaram na maioria das cidades do país. Sequer existe um censo nacional dessa população, nem uma política nacional a seu favor”, analisa Ariel. Além da capital, alvo de medidas do governo de Gilberto Kassab como a desapropriação de edifícios ocupados por sem-tetos no centro e a criação das polêmicas rampas “anti-mendigos” debaixo de viadutos, muitos outros municípios adotam políticas de “higienização social”. Um dos casos extremos é cidade de Assis, no interior do estado, onde desempregados são presos por “vadiagem”. O crime é previsto pelo código penal, mas atualmente está em desuso e passou a ser usado, nesse caso, “para criminalização e discriminação da população de rua”, comenta Ariel.

A própria violência física contra os moradores de rua passa muitas vezes despercebida pela grande imprensa, mas se tornou uma triste rotina em muitos centros urbanos. “Como o (massacre) do dia 19 foi algo muito forte e a imprensa pautou, então tudo o que aparecia de violência na cidade e em outros estados começou a se destacar, por conta desse foco.

Mas essa violência é cotidiana. A própria situação de rua já é uma violência e devia ser estampada nos jornais”, sustenta Alderon Costa.

De fato, a história lhe dá razão. O massacre mais antigo e impactante de que se tem notícia é o de 1962. No Rio de Janeiro, quase 30 moradores de rua foram assassinados na chamada “Operação Mata-Mendigo” [hiperlink: O massacre virou tema da peça de teatro “Topografia de um Desnudo”, e uma versão com o mesmo nome para o cinema já foi realizada.], que teria sido comandada pelo então governador Carlos Lacerda. O objetivo era limpar a cidade para receber a rainha Elizabeth no ano seguinte. Com o golpe militar de 1964, os inquéritos que acusavam policiais de envolvimento nos assassinatos foram arquivados, e a rainha acabou vindo somente em 1968.

A chacina da Candelária, também ocorrida no Rio de Janeiro, ficou para a história como um dos mais bárbaros massacres contra menores em situação de rua. O crime ocorreu em 1993, três policiais militares foram condenados e dois saíram impunes. O porto de Paranaguá também já foi cenário para outra triste agressão aos direitos humanos, quando em maio de 2006 foi denunciado o caso de moradores de rua que eram colocados em uma van, retirados da cidade e torturados. Além de dez guardas municipais terem sido acusados também foi apontado como um dos autores do crime o então secretário municipal de Segurança, Álvaro Domingues Neto. O caso foi levado à ONU e à OEA.

Outro resultado dessa história de massacres foi o surgimento de organizações que passaram a agir em defesa do povo da rua, como o Movimento Nacional da População em Situação de Rua, que neste ano completa cinco anos de existência. “O movimento surgiu com a dor da morte dos companheiros e companheiras que, por falta de uma política pública, foram mortos”, explica Anderson Lopes. Na época, pessoas em situação de rua passaram a realizar encontros e, com a intenção de pressionar o poder público a elaborar políticas específicas para esse segmento, criaram o movimento. Hoje eles têm organização nacional e já ocupam espaços em conferências e conselhos de participação. “A gente está discutindo e criando uma lei nacional para a população de rua vinda do movimento. Temos também um comitê específico em Brasília e foi formado um GIT, Grupo Interministerial de Trabalho, para discutir políticas da área”.

Outro espaço é o Conselho de Monitoramento da Política de Direitos das Pessoas em Situação de Rua no município de São Paulo, instituído em 2003 no governo Marta Suplicy e que conta com nove representantes da população de rua para fiscalizar a qualidade dos equipamentos de atendimento às pessoas em situação de vulnerabilidade social. Apesar das conquistas no âmbito institucional, a realidade ainda se mostra adversa. “Dentro dessas casas de acolhida, você passa por situações de constrangimento por parte dos educadores, os banheiros muitas vezes não têm condições de uso, as camas estão infestadas com vários tipos de hospedeiros, como muquiranas, percevejos, piolhos”, relata Mateus, que atualmente tem alternado suas noites dormindo em albergues e na rua.

Mateus acredita que o sistema de atendimento criado para a população em situação de rua faz com que o sujeito não consiga sair de sua condição. “Eles deram a porta de entrada, mas não nos deram uma porta de saída”, referindo-se à falta de políticas públicas que retiram o sem-teto da rua. Atualmente o que mais se tem são albergues que acolhem pessoas em situação de rua por um período determinado. Esses equipamentos de atendimento aos sem-teto estão municipalizados e administrados por ONGs. Segundo a prefeitura, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo mantém parceria com 825 organizações. A política de atendimento à população em situação de rua começou a ser incorporada na administração municipal na gestão de Luiza Erundina na capital, quando começaram a ser instalados albergues para o pernoite dessa população. Contudo, os esforços ainda são insuficientes diante da “invisibilidade” desse problema social.

Anderson Lopes, que foi para Brasília como delegado para a Conferência Nacional de Segurança Pública, levou um documento com proposições do movimento para a segurança da população de rua. Entre as propostas para a segurança está a desmilitarização da polícia militar, a unificação das polícias e a instituição de guardas comunitários. “Não queremos população de rua como caso de polícia. Isso é caso de educação, saúde, habitação”, critica. “Quem faz a política de habitação hoje é a polícia”.

Além do preconceito da sociedade e da própria vulnerabilidade socioeconômica, muitos moradores acreditam que massacres como o ocorrido há cinco anos são produto de uma política de limpeza social do centro de São Paulo. “Gente de alto poder na cidade está envolvida no massacre”, acredita Anderson. “Os guardas vêm, nos acordam, dizem que temos que levantar e que o prefeito de São Paulo não quer que nós passemos tanto tempo deitados na rua. Isso às quatro e meia da manhã”, relata Mateus. Para ele, “a morte social vem antes da morte física. O poder público condena as pessoas a serem mortos-vivos”.

Fonte: Lista racial

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