ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA
1º CONGRESSO DE POLÍTICA, PLANEJAMENTO E GESTÃO EM SAÚDE
CARTA DE SALVADOR
UMA AGENDA ESTRATÉGICA PARA A SAÚDE NO BRASIL 2011
Em 22 anos de SUS, foram muitos os avanços nas políticas de saúde. Esses avanços, contudo, não escondem as dificuldades que ameaçam a própria manutenção das conquistas. Ninguém desconhece que, nas condições atuais, há limitações importantes à efetivação dos princípios e das diretrizes do Sistema Único de Saúde.
Em primeiro lugar, as bases de financiamento das ações e dos serviços públicos de saúde são estreitase iníquas. Enquanto o investimento per capita do SUS foi de R$ 449,93, em 2009, o sistema de assistência médica supletiva despendeu R$ 1.512,00 por usuário. Esses valores são ainda mais contrastantes quando seleva em conta que cerca de 60% dos gastos públicos são destinados à assistência e os 40% restantes aplicados em ações essenciais para toda a população. Se, em termos de proporção do PIB, os gastos em saúde já somam 7,5% – e parece razoável, de acordo com as experiências dos países com melhores sistemas de proteção social,um aumento até 10% -, a proporção dos gastos públicos em saúde não chega a 3% do PIB, o que é, segundo as mesmas experiências, muito pouco.
O tema do financiamento traz, em segundo lugar, a questão da relação público-privado na saúde. Está claro que a segmentação da atenção à saúde dos brasileiros avança celeremente: é grande o risco de consolidação de um apartheid no sistema de saúde, no qual os ricos e os remediados utilizam serviços privados, razoavelmente financiados, em parte com subsídios públicos, enquanto os pobres utilizam serviços públicos, nitidamente sub-financiados. É preciso cessar os fluxos que transferem recursos públicos para as redes de mercantilização e financeirização da saúde, atendendo aos interesses de empresas de planos e seguros privados e de fabricantes de insumos. No que toca à regulação do setor privado, tem sido visível e preocupante a incapacidade do Estado – seja através da administração direta (Ministérios e Secretarias de Saúde), seja através da Agência Nacional de Saúde Suplementar – de assegurar que as operadoras e os prestadores de serviços atuem dentro dos limites do respeito ao interesse público.
Em terceiro lugar, o SUS necessita consolidar uma política de pessoal que assegure aos trabalhadoresda saúde condições adequadas ao exercício de suas atividades. Considerando que se trata de uma política de Estado, é inadmissível a falta de estabilidade do quadro de pessoal da saúde, o que compromete acontinuidade dos programas de saúde e, sobretudo, a criação de vínculos duradouros entre as equipes de saúdee as comunidades às quais devem servir. A demais, é necessário preservar, expandir e organizar ações vigorosas de educação permanente, estratégia fundamental para a qualidade do trabalho em saúde.
Em quarto lugar, há os problemas de gestão e organização do sistema e dos estabelecimentos de
saúde, devidos, em parte, ao arcabouço legal-institucional da administração pública que, com sua estrutura burocrática, ocupa-se mais (e mal) do controle dos processos administrativos do que do alcance de resultados na promoção e na recuperação da saúde. Neste aspecto, seguem abertos os debates e as experiências sobre organizações sociais ou fundações estatais, com relatos contraditórios acerca da sua efetividade, qualidade do uso de recursos e da garantia do interesse público. Outra parte dos problemas de gestão se atém à incipiente profissionalização dos quadros gestores, problema relacionado ainda à política de pessoal e ao uso político-partidário dos cargos de direção e assessoramento.
Em quinto lugar, o modelo de atenção à saúde do SUS continua dominado pelas práticas
individualistas, biologicistas, curativistas e hospitalocêntricas. Mesmo com a ampliação da cobertura da atenção primária, de fato, o princípio da integralidade é quase completamente relegado à letra fria da lei ou ao discurso acadêmico. A explicação das dificuldades de transformação das práticas de atenção reside, certamente, no padrão de relacionamento e atuação do poderoso complexo econômico-industrial da saúde, ou mais precisamente, nos interesses comerciais dos produtores e fornecedores de insumos – medicamentos e equipamentos médico-hospitalares – com estabelecimentos e prestadores de serviços. Na sua atual configuração, o complexo econômico da saúde negligencia o investimento em tecnologias de promoção da saúde e prefere reproduzir e expandir o modelo biomédico. Por sua vez, cientes da baixa efetividade e da ineficiência deste modelo, em termos de melhoria da saúde das populações, os dirigentes dos sistemas de saúde (e aqui se trata de um fenômeno mundial) tentam modificá-lo. Compete ao Brasil enfrentar seus desafios específicos de estabelecer políticas virtuosas entre a inovação tecnológica e as necessidades e demandas da população.
Por último, mas não menos importante, a relativa desmobilização da sociedade civil brasileira, em
particular, dos seus setores populares refletem-se nas possibilidades de avanços do SUS. A inovadora estrutura de controle social – conferências e conselhos –, consagrada legalmente, não tem sido capaz de assegurar um debate substantivo sobre as políticas de saúde e os rumos do SUS. Ao contrário, questões corporativas e paroquiais têm dominado a pauta de discussões. Na melhor das hipóteses, certas questões centrais, como a do subfinanciamento, são discutidas, mas sempre em uma perspectiva conjuntural. Ainda em relação ao controle social, o papel da mídia precisa sem melhor discutido.
Estas são as questões centrais a serem debatidas. As propostas de políticas de saúde não podem ser reduzidas ao seu escopo setorial, enfraquecendo a sua potência transformadora da realidade social.
O momento eleitoral deve servir para o aprofundamento do debate sobre os rumos das políticas de saúde. Propostas sérias sobre o financiamento da saúde exigem a explicitação de posições sobre a reforma tributária e sobre a regulação do setor privado, incluindo a questão dos subsídios públicos. A política de pessoal também precisa ser explicitada: como viabilizar a criação de carreiras de Estado para os trabalhadores da saúde? E quanto aos modelos de gestão pública: como assegurar a efetividade e a qualidade dos serviços, preservando o necessário caráter público da saúde? Que estratégias são adequadas para por em prática o princípio da integralidade? Que tipo de articulação buscar entre as políticas de saúde, de ciência e tecnologia e de indústria e comércio, a fim de proporcionar ao SUS os insumos necessários ao enfrentamento dos problemas de saúde dos brasileiros por um custo suportável pela sociedade? Como renovar e fortalecer a participação, respeitando a autonomia dos movimentos sociais? Considerando o que diz o artigo 3º da Lei 8080/90 sobre os determinantes e condicionantes do estado de saúde, como modificar a organização social eeconômica do país no sentido de elevar os níveis de saúde da população?
O esforço, ao qual a Abrasco quer se unir, é o de buscar respostas a tais questões, baseadas na noção de justiça social, ainda que necessariamente pragmáticas. Tanto as avaliações triunfalistas, que supõemavanços lineares e progressivos, quanto aquelas dogmaticamente estruturalistas, que levam à paralisia política ou à mera reiteração de slogans ideológicos, terminam por atribuir nossas mazelas a uma herança da qual não podemos nos afastar, seja em função da adesão aos cânones de uma modernidade perversa, seja em razão da negação da especificidade dos processos vigentes de exclusão, Portanto, a busca de respostas justas e efetivas
está a exigir um debate mais alentado sobre as políticas públicas no Brasil, que, simultaneamente, reconheça os envoltórios político-ideológicos das análises das políticas e se paute pela atualização do conhecimento sobre as condições demográficas, econômicas, sociais e culturais da contemporaneidade. Esse esforço é indispensável tanto para o processamento de possíveis respostas, quanto de novos questionamentos à Reforma Sanitária Brasileira e ao SUS.