Uma ira epidêmica

Vaia corporativista ao dr. Juan Duvergel Delgado expôs intolerâncias que envolvem o Mais Médicos

Por: Luís Fernando Tófoli

Juan Merquiades Duvergel Delgado formou-se médico há quase duas décadas, e há 12 anos participa de missões de atenção primária. Congruente com o trabalho que prestou no Haiti, país com o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) das Américas, vai trabalhar em um Estado com um IDH que está entre os piores do Brasil: o Maranhão.

Na terça-feira, na saída da recepção aos médicos estrangeiros que estão realizando formação complementar em Fortaleza, o dr. Juan e seus colegas cubanos foram vaiados em um protesto do Sindicato dos Médicos do Ceará. Além de me encher de uma grande vergonha e da necessidade de pedir desculpas aos doutores estrangeiros em nome de todos os médicos brasileiros que não concordam com o lamentável ocorrido, a cena da qual eles foram vítimas me suscitou algumas reflexões.

Entre elas está uma sensação de incômodo com o distanciamento que o Ministério da Saúde tem mantido de tradicionais atores sociais nas tomadas de decisão – algo que vem se repetindo em vários campos, da política de drogas ao enfrentamento da aids, e parece ser um mal do qual padece a administração federal como um todo.

Também vejo com reservas o drible que o Mais Médicos dá no Revalida, um programa de revalidação de diplomas de medicina que está em processo de reformulação, com foco na definição de parâmetros mínimos de qualidade para que um estrangeiro seja médico no país – sem exigir nem de mais, nem de menos.

Também é importante compreender a constatação óbvia – escotomizada tanto por entidades médicas quanto pelo governo – de que mais saúde não se faz somente com mais médicos, mas também com mais profissionais de todas as especialidades e com o protagonismo dos movimentos sociais.

Além disso, o recurso da tecnologia – que não deve substituir o cuidado humano, mas é realmente necessário – precisa de financiamento adequado. Cabe perguntar, portanto, se é correto o montante financeiro federal destinado à saúde suplementar por meio de renúncia fiscal no imposto de renda e do pagamento de planos de saúde por empresas públicas. Essas são cifras que, se encaminhadas ao Ministério da Saúde diretamente, aumentariam consideravelmente seu orçamento.

O Brasil encontra-se em uma encruzilhada sanitária, e precisa decidir qual modelo deseja seguir. Exemplificando o dilema com as duas maiores rendas per capita das Américas, precisamos saber quanto queremos ser como o Canadá, que tem um sistema nacional de saúde que cuida praticamente de todos os cidadãos, tendo a porta de entrada obrigatória na atenção primária e excelentes índices sanitários; e quanto queremos ser como os Estados Unidos, que detêm o recorde mundial de gastos em saúde, um sistema de saúde público nanico e índices que estão entre os piores entre os países de alta renda. A resposta jaz, em grande medida, nos objetos de desejo de grupos sociais que brotam de um contexto no qual o crescimento do consumo é extremamente valorizado pelo poder público.

É com tristeza que eu, um professor de medicina, testemunho o alastramento de uma ira epidêmica que impede as corporações médicas de perceberem que suas manifestações alargam cada vez mais o hiato existente entre como os médicos brasileiros se veem e como a sociedade os tem visto. Supostas denúncias e funestas consequências são lançadas e esse é um momento em que é difícil distinguir o fato do factoide. Assim, é preciso agora ter a serenidade para avaliar cuidadosa e rigorosamente o programa, tanto em suas potenciais virtudes quanto em seus possíveis riscos. Esse é um dos papéis de uma imprensa responsável e de uma universidade atenta.

Diz-se que o cenário em que os cubanos vão atuar é catastrófico, sem recurso médico decente. Claro que, apesar de evidentes melhoras nas últimas décadas nos rincões do Brasil, o SUS ainda é extremamente carente de insumos e equipamentos. É, no entanto, improvável que esse cenário seja pior que o do Haiti após o terremoto de 2010.

Também se coloca em dúvida a capacidade de comunicação dos cubanos, esquecendo do preconceito jocoso com que muitos médicos brasileiros se referem a migrantes de regiões remotas pelos vocábulos dialetais que usam. Com escuta atenta e empatia, as barreiras entre o espanhol caribenho e os diversos falares do Brasil poderão certamente ser ultrapassadas.

Tenho a sincera esperança de que os recém-chegados possam agir como os médicos formados em Cuba que conheci durante os 11 anos em que trabalhei no interior do Nordeste, e assim reensinar a muitos doutores brasileiros o que eles um dia já souberam: que a principal ferramenta do esculápio é seu tirocínio e seus sentidos; que não se pode pedir exames complexos sem exercer a capacidade de ouvir o paciente; que os principais valores que devem nortear os frequentes desafios da prática da medicina deverão ser os humanos e sociais; e que a arte de aliviar o sofrimento humano jamais poderá ser subjugada pelos interesses corporativos e pela busca de poder.

*Luís Fernando Tófoli é psiquiatra e professor de psicologia médica e psiquiatria da Unicamp

 

Fonte: Estadão  

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