Bahia: Conjunto de peças sobre o candomblé é retirado do Departamento de Polícia Técnica

A Bahia pode festejar um marco pioneiro no tratamento da memória sobre as religiões e cultura afro-brasileira. Peças que integravam um museu instalado nas dependências do Departamento de Polícia Técnica (DPT) estão, agora, sob a guarda de um espaço considerado mais adequado: O Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia (Mafro/Ufba).

As 199 peças da coleção Estácio de Lima foram catalogadas, passaram por limpeza e estão em processo de restauração e estudo sobre técnicas e produtos usados para a sua confecção.

Além disso, busca-se de todas as formas detalhar a sua origem, na medida do que for possível. “É um projeto que une estudo e pesquisa”, explica Graça Teixeira, doutora em história e museologia e diretora do Mafro.

As peças contam a história da época em que o candomblé era uma contravenção e, portanto, caso de polícia. Ele também era tratado como patológico, principalmente, por meio dos estudos de Nina Rodrigues (1862-1906).

O Mafro planeja ações como o lançamento de um catálogo e exposições, inclusive uma que conte a história da perseguição e disseminação de preconceito sobre a religiosidade afro-brasileira.

“Foi feita uma repatriação simbólica destas peças. Elas estão de volta a um patamar em que podem ser apreciadas como memória de um povo que resistiu a várias tipos de violência”, diz o ex-diretor do Mafro, Marcelo Bernardo da Cunha.

Doutor em história e museologia, Cunha está estudando aspectos relacionados à coleção em seu projeto de pós-doutorado.

Constrangimento – As peças da coleção Estácio de Lima ficavam no DPT e integravam uma mostra com roteiro considerado constrangedor por especialistas em cultura afro-brasileira e espaços de memória, como os museus.

Grupos de estudantes de várias idades circulavam pela área que reunia as peças de candomblé, armas de vários tipos, equipamentos usados para falsificar dinheiro e partes do corpo de animais com deformidades físicas.

O espaço era identificado como um “museu” de Medicina Legal, Antropologia, Cultura e Etnologia.

Em 1997, um movimento articulado por representantes de terreiros conseguiu que as peças fossem retiradas do DPT e levadas para o Museu da Cidade, pertencente à Fundação Gregório de Matos (FGM), órgão da prefeitura.

A medida seguiu uma recomendação do Ministério Público Estadual (MPE). Em 2010, A TARDE apurou que as peças tinham retornado ao DPT. O retorno foi por força de uma liminar conseguida pela ex-diretora do DPT, Maria Theresa Pacheco.

Retirada – Quando a reportagem foi publicada, no dia 18 de julho, Maria Theresa já havia morrido. O MPE abriu procedimento para investigar as razões do retorno e o governador Jaques Wagner determinou que as peças fossem retiradas do DPT.

Por meio da Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), que tinha como titular a hoje ministra de Políticas para a Promoção da Igualdade, Luiza Bairros, iniciou-se o processo para tratamento adequado das peças.

“Ficamos satisfeitos com a ação da Sepromi. Agora, acho importante que a história da perseguição religiosa seja contada para que não volte a acontecer”, diz a promotora de Justiça, Márcia Virgens.

O passo inicial foi ouvir sacerdotisas e sacerdotes das religiões de matriz africana. “Eu fui uma das pessoas convidadas a ir até lá para ver o que as peças representavam, inclusive a necessidade de cuidado do ponto de vista religioso”, diz Air José, babalorixá do terreiro Ilê Odô Ogê, também conhecido como Pilão de Prata.

O objetivo desse passo foi tentar identificar a natureza das peças e o que representam do ponto de vista religioso, ou seja, se podiam ou não ser expostas.

 

As 199 peças da coleção Estácio de Lima já foram catalogadas (Foto: Raul Spinassé | Ag. A TARDE)

A segunda fase do processo foi repassar as peças para o Mafro, em regime de comodato durante dez anos. No Mafro, as peças passaram a ser analisadas. No processo de pesquisa, ainda em curso, estão sendo usados recursos do próprio museu.

“O Mafro articula estes procedimentos a partir das suas ações de formação”, aponta Marcelo Cunha.

O mais difícil tem sido determinar com precisão a qual terreiro pertencia, por exemplo, uma estatueta de Exu. “Elas continuam sem registro preciso, mas continuamos investigando possibilidades”, afirma Cunha.

Coleção traça impactos da herança do racismo

Professor da Faculdade de Medicina da Bahia, Nina Rodrigues foi um dos expoentes do racismo científíco. As teorias defendidas por ele e os discípulos que formou  indicavam que traços físicos (fenótipo) forneciam pistas sobre o caráter moral.

Como o tipo físico negro era considerado “o mais baixo na escala moral”, aqueles que o possuíam  “lideravam” a possibilidade de cometer crimes, segundo esta teoria.

Já a prática religiosa derivada da herança africana, como o candomblé, do qual ele foi um dos primeiros a fazer uma descrição detalhada para revistas científicas, era tida  como traços de patologias, ou seja, doenças psiquiátricas.

Curioso é que Nina Rodrigues era próximo de terreiros a tal ponto que chegou a ser ogã do Gantois.

Estigma – Ideias deste tipo criaram etereótipos e serviram de base para a escola de medicina legal baiana. Para a polícia, em contato com essas ideias, negros eram potencialmente criminosos e tinham práticas culturais, como a religião, com desvios patológicos.

Desse ponto de vista, peças de candomblé, inclusive apreendidas em batidas policiais durante o período em que esta religião era considerada contravenção, ficavam ao lado de artefatos de crime.

O próprio Nina criou a primeira coleção, em 1902, dedicada à Medicina Legal, Etnografia, Antropologia Física e Criminal. Três anos depois, um incêndio destruiu o espaço onde ela estava, que voltou a ser reativado em 1915.

 

 

Fonte: A Tarde

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