Violência Sexual e a Prioridade Absoluta

O Estado investiu em 2011 recursos insuficientes na política de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, além de deixar de executar a integralidade dos recursos planejados.

Por Márcia Acioli, assessora política do Inesc

No início de abril deste ano, fomos surpreendidos, mais uma vez, com a decisão absurda do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que livrou um homem da responsabilidade pelo estupro de três meninas de 12 anos. Para surpresa, e igual indignação, a sentença foi proferida por uma mulher, a ministra do Superior Tribunal de Justiça, Maria Thereza de Assis Moura.

Baseada em preconceitos e nos estigmas atribuídos a meninas inseridas no contexto da exploração sexual, a ministra alega que eram iniciadas no sexo, não eram mais inocentes. Não sabe ela que crianças não se prostituem, mas são capturadas pelo o mercado perverso do sexo. Isto acontece quando são insuficientemente protegidas, quando negligenciadas pelo Estado, quando violentadas no próprio lar. Estar no mundo do comércio do sexo não é uma decisão autônoma de crianças felizes e, ainda, qualquer abordagem sexual sem consentimento é violência, independente da condição de quem a sofre. Não existe violência relativa.

A posição da ministra reflete insensibilidade e profundo desprezo pelas legislações, em especial, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pela Convenção Internacional sobre os Diretos da Criança – do qual o Brasil é signatário.

O ECA é muito claro quando diz que, no seu art. 5º

“Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, EXPLORAÇÃO, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.”

A Convenção também define responsabilidade com relação à proteção da infância, no seu artigo 3:

“Os Estados Partes comprometem-se a assegurar à criança a proteção e o cuidado que sejam necessários ao seu bem-estar, levando em consideração os direitos e deveres de seus pais, tutores ou outras pessoas responsáveis por ela perante a lei e, com essa finalidade, tomarão todas as medidas legislativas e administrativas adequadas.”

Nem é necessário recorrer aos instrumentos jurídicos para saber que estupro é violência. Estupro de crianças é violência maior ainda, por motivos óbvios.

Enfim, o fato teve ampla repercussão por tamanha insensatez, num tempo em que o Brasil assume enfaticamente posição contra a violência e exploração sexual de crianças e adolescentes. O país investiu na elaboração de programas e ações com o objetivo de enfrentar tal prática, dando atenção para a prevenção, para a responsabilização dos agressores e atenção às vítimas. Assim o episódio suscitou reação imediata por parte da ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, que pediu reversão da decisão.

A despeito de ser um programa importante para o governo federal, constatamos, depois de analisar os gastos federais na perspectiva da metodologia “Orçamento e Direitos” do Inesc, que o Estado investiu em 2011 recursos insuficientes na política de enfrentamento à violência sexual contra crianças. Não bastasse a baixa previsão orçamentária o Estado deixou de executar a integralidade dos recursos planejados.

No âmbito da Lei Orçamentária Anual (LOA) 2011, foram pagos 70% dos recursos autorizados para o Programa Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (R$ 69,9 milhões). Outros R$ 13,2 milhões foram pagos ainda na forma Restos a Pagar, ou seja, compromissos vindos de anos anteriores. No total, em 2011, o governo federal desembolsou 83,1 milhões neste programa, abaixo dos créditos autorizados na LOA 2011 (R$ 99,8 milhões).

Em 2012, no programa específico voltado para a proteção à criança, chamado Promoção dos Direitos de Crianças e Adolescentes, no novo Plano Plurianual (PPA) lançado pelo governo Dilma, constatamos que o Estado ainda é lento e não demonstra a priorização preconizada pelo ECA, no seu artigo 4º: “(…) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; e destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”.

Até o início de abril foram pagos R$ 44,7 milhões, apenas 9,4% orçamento autorizado (R$ 477,4 milhões) no referido programa para 2012. Ainda foram desembolsados na forma de restos a pagar R$ 5,7 milhões no Programa Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.

Portanto, no lugar de culpar as vítimas pela violência que sofrem é preciso que o Estado demonstre suas prioridades com políticas bem articuladas e uma execução orçamentária exemplar. As crianças vítimas da violência devem ter atenção adequada e em tempo hábil para atender as suas demandas, os autores da violência devem ser imediatamente responsabilizados e a sociedade inteira deve ser educada para entender definitivamente que crianças e adolescentes são pessoas que, em situação peculiar de desenvolvimento, são prioridade absoluta, pelo menos, no texto da lei.

*Os dados orçamentários que foram trabalhados neste artigo foram retirados do Siga Brasil/Senado Federal

 

 

 

Fonte: Inesc

+ sobre o tema

Um tigre não anuncia sua tigritude, ele ataca!

O sistema racista coloca na mesma prateleira e trata...

Após morte, campanha tenta proteger mulheres de falsos motoristas de aplicativo

A #Whatsmyname, criada nos EUA, pede que passageiras verifiquem...

Gente boa também mata

Por Lelê Teles, enviado para o Portal Géledes Quem reclamou...

Pela primeira vez, mulheres ocupam chefia de todas as comissões regionais da ONU

As comissões regionais das Nações Unidas existem há mais...

para lembrar

Por que eu, mulher negra da quebrada, quero ser vereadora

Colaborou Juliana Martins, especial para o blog MULHERIAS. Dados da...

Blogueira enumera as cinco cantadas racistas mais comuns

"Você é uma morena muito bonita." "Você tem os...
spot_imgspot_img

Mulheres Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Intersexo, lançam Comitê Impulsor Nacional para a Marcha Nacional de Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver

Durante a abertura da 12ª edição do SENALESBI – Seminário Nacional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais, que acontece de 16 a 18 de maio em...

No DR com Demori, Cida Bento debate a desigualdade racial no Brasil

O programa DR com Demori, da TV Brasil, recebe nesta terça-feira (13) a psicóloga e escritora Cida Bento, que já figurou entre as 50...

Esperança Garcia: quem foi a escravizada considerada a 1ª advogada do Brasil

Acredita-se que Esperança Garcia, uma escravizada que vivia em fazenda localizada a 300 quilômetros de onde hoje é Teresina, no Piauí, tivesse apenas 19 anos quando escreveu...
-+=
Geledés Instituto da Mulher Negra
Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.