A pedagoga Giovanna Letícia Isidoro e a estudante de pedagogia Nayara Gisele da Silva tiveram um dia de convivência com as crianças do terreiro Ilê Axé Omo Oya Bagan e Odé Ibô, em Hortolândia (SP). Os aprendizados e observações dessa experiência desaguaram no e-book “Vivendo a Infância de Terreiro: um dia com as crianças do Ilê Instituto Doné Eleonora”, que reúne os anseios desse público na educação.
O objetivo principal da publicação é destacar a importância de reconhecer e valorizar as infâncias de terreiro a partir da perspectiva das próprias crianças. Com produção de Geledés – Instituto da Mulher Negra, o material faz parte do projeto “Primeira Infância no Centro”, coordenado pela área de Educação e Pesquisa da instituição, sob a liderança de Suelaine Carneiro. O conteúdo está disponível na versão impressa e em e-book e pode ser acessado pelo Portal Geledés.

“O livro é um chamado para olharmos e pensarmos políticas públicas e cidadania. É um movimento tanto de reconhecer necessidades específicas de uma população que conta com lógicas diferentes do Estado, quanto de projetar políticas públicas a partir do que o público-alvo pensa sobre suas necessidades. É sobre olhar para o que as crianças comunicam como urgência, colocá-las no centro das reflexões e imaginar junto”, afirma Gabriela Costa, assistente de projetos de Educação em Geledés.
Durante a atividade, realizada em 24 de agosto de 2024 e nomeada de “Dia da Criança”, as profissionais perceberam que, apesar da pouca idade, falam com propriedade sobre as práticas realizadas no terreiro. Por exemplo, contaram sobre os seus Orixás com familiaridade, o que demonstra pertencimento e identificação.

Pontuam ainda que as crianças relataram sobre racismo no ambiente escolar e se queixaram do espaço educacional não abordar temas como o candomblé, a história e a cultura afro-brasileira. “Nas conversas, refletimos sobre a necessidade desses outros espaços, além do terreiro, serem verdadeiramente plurais, incorporando livros e imagens representativas que não se limitem à cultura eurocêntrica”, dizem as pesquisadoras em um trecho do livro.
Uma fala de Samira, uma das crianças participantes, reflete tal anseio. “Aqui no terreiro a gente vê e aprende as histórias das pessoas pretas. Na escola, também aprendemos história, mas não é a mesma”.
Em outro ponto da publicação, a mesma estudante relata uma situação vivida em sala de aula: “a professora estava falando sobre heróis da história e eu falei de Zumbi dos Palmares. Você acredita que ninguém sabia? Eu fiquei chocada”, relatou.

Primeira infância no centro
O terreiro de candomblé Ilê Axé Omo Oya Bagan e Odé Ibô foi fundado em 1944 por Mãe Eleonora de Oya. Além de cuidar do contexto espiritual das pessoas, os responsáveis pelo local se preocupam em disseminar o legado e tradições ancestrais africanas. Por isso, criaram o ponto de cultura Ilê Instituto Doné Eleonora, que realiza ações em prol da valorização da cultura afro.
Segundo Gabriela Costa, a ação no terreiro foi pensada para ser uma construção em conjunto com as crianças e a organização, a fim de sistematizar demandas específicas enquanto pertencentes a uma comunidade de axé. As respostas passaram por questões como identidade, pertencimento e educação para relações étnico-raciais.
“Por exemplo, se uma criança precisa cumprir uma obrigação, ela precisa faltar na escola entre 3 a 21 dias. Ao ser iniciada, não pode comer alguns alimentos, vestir algumas roupas e fazer atividades que envolvam esforço físico ou receber sustos. Então, ao longo da atividade, fizemos exercícios de escuta sobre como é a rotina escolar, o que gostariam que tivesse na escola. Assim como o que aprendem no terreiro e não aprendem na escola”, explica.
O livro e a atividade fazem parte do projeto “Primeira Infância no Centro: garantindo o pleno desenvolvimento infantil”, que promove ações voltadas a assegurar direitos de crianças negras, indígenas, quilombolas e de terreiros, com o objetivo de elaborar e implementar políticas públicas que revertam as condições de vulnerabilidade enfrentadas por essas crianças desde o início da vida.
Gabriela destaca a importância de olhar para as especificidades vividas por crianças de terreiro. “Quando disputamos políticas públicas para o enfrentamento do racismo, é necessário voltar o olhar para diferentes grupos impactados, levando em consideração o fato de pessoas negras serem diversas entre si e, portanto, não existe universalidade possível”.
Nesse contexto, é relevante se atentar também para o racismo religioso, que frequentemente fere adeptos e adeptas. Entre 2023 e 2024, segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, houve uma alta de 66,8% em relação a denúncias de intolerância religiosa pelo Disque Direitos Humanos (Disque 100). A maioria das vítimas eram de umbanda e candomblé.
“Para que as crianças negras, na pluralidade das suas existências e experiências, não sejam deixadas de fora, é necessário olhar para especificidades diversas e, neste caso, a que olhamos foi a das crianças de terreiro. Escutamos o que elas acreditam ser urgente para se sentirem respeitadas de forma integral”, pontua Gabriela.