Vladimir Safatle: Reação violenta dos médicos contra a vinda de profissionais de outros países. Parecem representantes da extrema-direita xenófoba

Pela livre circulação de pessoas

Há algum tempo, o governo tem discutido a possibilidade de incentivar médicos estrangeiros a atuar no Brasil. Com as manifestações de junho, tal ideia entrou na pauta das prioridades. Ela foi a única resposta do Executivo à indignação popular contra um sistema público de saúde que sofre brutalmente de subfinanciamento. Todos conhecem a sina de problemas de infraestrutura, pessoal e baixos salários que atinge a saúde pública brasileira, ainda mais depois do fim da CPMF. Sem fonte suficiente de financiamento, a saúde pública parece fadada a ser um dos setores em que a falência do nosso modelo econômico fica mais evidente.

 

É de causar estranheza, porém, a reação violenta dos médicos contra a vinda de profissionais de outros países. São compreensíveis as manifestações que procuram insistir na maior amplitude dos problemas da área e que fazem questão de lembrar que ainda há muito para ser feito. Mas não é compreensível que isso sirva de justificativa para manifestações contra a possibilidade de estrangeiros serem chamados para trabalhar no Brasil.

No fundo, talvez sem perceber, os médicos acabam por protagonizar passeatas a favor dos “brasileiros, primeiro” que mais parecem saídos do álbum de família da extrema-direita xenófoba comum no mundo desenvolvido. Não é possível admitir nenhuma forma de reserva de mercado de trabalho, pois ela quebra um princípio caro à vida democrática: a livre circulação de pessoas. Pois durante muito tempo vimos com os olhos da indignação como países europeus e norte-americanos impediam indivíduos à procura de trabalho de circular livremente, tratando-os como criminosos em potencial. Muitos brasileiros e latino-americanos foram vítimas dessas práticas deploráveis. Por isso, não há razão alguma para repetirmos tais ações em nosso País.

Na verdade, achamos natural uma situação em que o capital tem direito à livre circulação e as pessoas têm circulação restrita. O capital pode transitar de um país a outro em qualquer momento, assim como os produtos, isso ao menos segundo os preceitos liberais da economia. Já os seres humanos devem obedecer aos limites da fronteira e ficar onde estão, a não ser se queiram fazer turismo ou trabalhem em áreas estratégicas para outras nações. Melhor seria se o inverso fosse realidade, ou seja, que o capital tivesse circulação restrita e os cidadãos tivessem liberdade de viver suas vidas onde quisessem.

Nesse sentido, o problema da validação do diploma poderia ser resolvido de maneira simples. Há uma confusão do Ministério da Educação em relação ao assunto. Ele diz respeito tanto a diplomas de graduação quanto àqueles de mestrado e doutorado. Veja o caso dos títulos de mestrado e doutorado. Se alguém faz uma tese em outro país, por exemplo, o ministério exige um pedido de validação de diploma em alguma universidade brasileira. Tal universidade comporá então uma segunda banca para avaliar a tese que já foi objeto de uma banca de avaliação em outro país. Nada mais irracional e corporativista. Muito melhor seria se o ministério estabelecesse, de uma vez por todas, uma lista das universidades consideradas compatíveis com o nível de exigência das universidades brasileiras, o que simplificaria em muito o processo de validação.

 

Com essas pequenas ações e reações acabamos por decidir o rosto do país que queremos. Não haveria nada pior do que utilizarmos a justa indignação contra condições aviltantes de trabalho e de infraestrutura para escondermos um estranho sentimento segregacionista que, em alguns casos, foi alimentado por reações dignas do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), pelo fato de boa parte dos médicos a ser chamados ter nacionalidade cubana. Uma sociedade rica é uma sociedade que acolhe aqueles que procuram refazer suas vidas em outro lugar e auxiliar na construção do desenvolvimento social.

 

 

 
 

 

+ sobre o tema

Empresa torna-se mais competitiva quando dá espaço para a diversidade

A diversidade traz competitividade, mas nem todas as empresas...

Doença falciforme é tema de audiência que o Senado realiza nesta manhã

Acontece neste momento, na sala 9 da Ala Alexandre...

A violência eufemismada de jornalismo: ‘Paulo Sérgio, estuprador’

Em vídeo postado recentemente no YouTube, a repórter Mirella...

para lembrar

MT: homem confundido com estuprador é espancado até a morte

Maranhense foi linchado e levou socos e chutes no...

Carta de apoio às famílias ocupantes da Usina Ariadnópolis, em Minas Gerais

Uma disputa judicial envolve 462 famílias de trabalhadores rurais...

Ministra diz que só ação federativa pode conter violência contra jovens negros

A ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos...

Segundo DCM, Reinaldo e Mainard estragaram a Abril

"Cada um a seu jeito, Mainardi e Azevedo...
spot_imgspot_img

Transição Justa é pauta de evento de Geledés sobre a COP30

A COP30 será uma oportunidade para colocar a agenda racial do Sul Global no centro das negociações das temáticas sobre Transição Justa, Gênero, Adaptação...

Morre Marielle Ramires, fundadora do Midia Ninja e do Fora do Eixo

A jornalista e ativista Marielle Ramires, uma das fundadoras do Mídia Ninja e do Fora do Eixo, morreu nesta terça-feira (29), em consequência de um câncer no estômago. De acordo...

Ajuliacosta e Ana Paula Xongani participam de conversa sobre comunicação com jovens formados por Geledés 

Como parte da programação de aniversário de 37 anos de Geledés - Instituto da Mulher Negra, ocorreu no dia 26 de abril um encontro...
-+=
Geledés Instituto da Mulher Negra
Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.