Você não é como aquelas

– Quem me dera que todas as outras mulheres fossem assim.

Por Antonia Dante Do Lugar de Mulher

Eu estava ali colocando a minha calcinha depois de uma noite mais que boa num motel, com um rapaz que eu tinha acabado de conhecer num bar. Uma noite boa não, uma noite verdadeiramente espetacular, onde os nossos corpos se entenderam como velhos amigos.

Alguns anos atrás eu teria encarado como um elogio, me sentiria lisonjeada e em algum lugar dentro de mim pensaria: É. Realmente. Ele tem razão. Eu não sou como as outras mulheres. Alguns anos atrás eu realmente acreditava que por não querer seguir o mesmo comportamento default de meninas da minha idade, de preservar a virgindade, de não ligar para roupas, fofocas e por outro lado curtir política, punk rock, beber cerveja como um bretão e andar sempre em companhia dos garotos me fazia alguém diferente, especial, acima das outras meninas.

Mas eu não sou mais a pessoa que eu era anos atrás.

Calmamente eu continuei a me vestir e perguntei:

– Assim como?

Definitivamente ele não esperava a pergunta. Demorou aqueles dois segundos, disfarçou enfiando a camisa azul marinho na cabeça.

– Assim, ué. Que não tem frescura, que topa transar com um cara que acabou de conhecer no bar.

– Eu não acho que todas as mulheres devam ser iguais.

Permaneci calmamente vestindo a minha roupa. Ele começou a se explicar argumentando que não foi isso que ele quis dizer. Além de tudo deselegante, pensei. Comparar a moça que dividiu as últimas horas de suor com outras mulheres. Definitivamente parece cada vez menos um elogio e mais e mais com aquela falta de noção inerente aos homens que se sentem no direito de regular como mulheres devem ser, se portar, se vestir. Logo lembrei de uma amiga muito sábia que estampou em uma camiseta a frase “Fica caladinho para eu gostar de você”. Como eu queria estar usando essa camiseta agora.

Ele era muito bonito e eu tenho um coração pra lá de mole, sou uma romântica afinal. Se romântica eu não fosse não estaria com meu coração partido lamentando: ele é lindo, tem um beijo incrível, um pau que é um monumento da virilidade, pegada, bom papo, DYVA, tinha que ser um machistinha? Que provação. Sorte a dele que orgasmos são sinônimo de paciência e bom humor, e calado o moço era um poeta.

– Beleza. Não precisa se explicar. Também acho que todo homem deveria ser igual a você e chupar buceta, coisa que poucos fazem.

Ele riu, o clima do quarto desanuviou um pouco. Não era hora para aula de feminismo, afinal. Mas eu realmente acho muito curioso como para alguns homens “não ser como as outras” está no campo do elogio, como se as características atribuídas ao campo do feminino obrigatório, aceito socialmente fossem de alguma forma feias, vergonhosas, fúteis, de segunda classe. E que em alguns meios sociais, moderninhos, descolados, de esquerda “não ser como as outras” é algo aceito pelas mulheres como um selo de qualidade onde supostamente você teria transcendido esses mimimis ridículos de mulheres e teria sei, lá, entrado no clube dos seres humanos que merecem ser ouvidos, que merecem respeito. Você, criança, teria ganhado uma cadeira grande para sentar na mesa dos adultos.

Só depois de tomar umas rasteiras da vida eu descobri que “não ser como as outras” não me tornava um cara, não me deixava imune a nenhuma merda que poderia me acontecer por ser mulher. E que se muitas e muitas mulheres aceitavam de bom grado os papéis que eram destinados a elas era pelo mesmo motivo que eu os rejeitava: se sentir mais protegida e menos vulnerável. Só depois de muito bater cabeça eu percebi que “ser” de um jeito ou de outro definitivamente não estava descolado do que socialmente se exige e se espera de uma mulher. E se eu operava pelo contraponto no mínimo, no mínimo eu partia do mesmo referencial – como uma mulher deveria ser.

(Ontem fui em uma festinha de rua no Rio de Janeiro, dessas que pululam na cidade querendo resgatar o espírito carioca roots. A roda de samba tocou Ai que saudades da Amélia e eu comentei com uma amiga: Amélia é que era de verdade, mas ele está cantando é para outra, né? “você só pensa em luxo e riqueza, tudo que você vê você quer” etc etc. Fato é que para o macho eu lírico da música nenhuma moça é boa o suficiente. Afinal, cadê a Amélia não é mesmo?)

E quem é essa “outra”, não é mesmo? A outra é aquela que faz algo que eu não faria. Para uma jovem cristã que decidiu esperar, eu sou a outra que ela não é. “Não sou dessas que transam antes do casamento”. Para mim a moça que espera ser cortejada para poder ter alguma chance sexual é a outra que eu rejeito e desdenho. “Não sou dessas puritanas”. No fim das contas “Não ser esse tipo de garota” é só mais um sintoma do machismo estrutural que gosta de regular o nosso comportamento sexual e afetivo.

No fim das contas eu percebi que eu sou sim, muito dessas, desse tipo de garota, igual a milhões de garotas – as violências a que somos submetidas, físicas, sexuais, emocionais, simbólicas, estruturais muito mais nos aproximam do que nos separam.

Infelizmente eu sou sim, esse tipo de garota, tipo uma de cada cinco das universitárias que sofreu violência sexual dentro do campus. Sou sim, sou muito dessas, que teve que falar alto numa reunião de trabalho onde curiosamente só os homens eram ouvidos. Sou sim uma dessas mulheres que teve que fazer um aborto clandestino colocando minha vida em risco. A cada segundo que passa mais uma garota se torna semelhante a mim, e eu a ela.

Entramos no carro e acho que o rapaz percebeu a minha cara de desgosto e colocou uma musiquinha no rádio. Ceremony, do Joy Division “This is why events unnerve me, They find it all, a different story”. Apropriado. Cantarolei, infeliz com a tragédia de que nunca mais vou transar se for esperar aparecer um cara que não fale uma merda, umazinha que for sobre mulheres, homens, relacionamentos. Que não reproduza um clichê, que não faça uma piada ofensiva. Morrerei seca, com teias de aranha, mumificada, drenada.

– Você tá puta?

– Não, não tô puta. (sou puta, pensei)

– Falei merda?

– Falou. (muita)

– Desculpa.

Ai meus sais, acho que eu vi uma centelha de humanidade nesse homem. Será? Estacionamos na porta do prédio. Ele me beijou, pegou na minha mão.

– Posso te ligar?

Bem que os paradigmas poderiam se desconstruir sem se meter na minha vida sexual. Seria tão tão bom. Porém:

Not today, Satan. Not today.

 

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