Manual de autodefesa intelectual (II)

“Para examinar a verdade é necessário, uma vez na vida, colocar todas as coisas em dúvida tanto quanto se possa.” Essa frase do filósofo René Descartes (1596-1650) foi extraída de seus Princípios da Filosofia e Meditações Metafísicas e está citada no programa da peça. Que começa ao som do belíssimo samba de Eduardo Gudin e Roberto Riberti “Velho Ateu”, na voz de Beth Carvalho.

Por Izaías Almada Do Blog da Boitempo

A partir daí, é como se todos nós fossemos convidados ao exercício da dúvida ou, se quiserem, das dúvidas. Um desafio às nossas certezas. Não com a obviedade com que escrevo no parágrafo abaixo, claro, mas com sutilezas, com alguma poesia…

Deus existe? O papa é o seu representante na terra? O medo é um sentimento natural? A covardia é fruto do medo? O que eu leio na imprensa á verdade? Quantas mentiras geraram a invasão do Iraque? Liberdade é poder vestir jeans? Comunista comia criancinha? Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha? A corrupção só chegou ao Brasil em 2002? O primeiro milho é dos pintos? Homem mau dorme bem? Todo político é corrupto? A propaganda é a alma do negócio? Cristo ou Barrabás? A raça branca é superior? Quem semeia vento colhe tempestade? A razão do mais forte é sempre a melhor? Capital ou trabalho?

Com interpretações sob medida para um espetáculo que nos convida à reflexão, as atrizes Fernanda Azevedo, Maíra Chasseraux, Maria Carolina Dressler e o ator Vicente Latorre não só confirmam o talento que têm para o palco, mas – sobretudo – o talento que têm para nos conduzir por um mundo repleto de enganadoras certezas.

Nada me pareceu gratuito na representação do grupo Kiwi, que aponta – entre outras advertências – para o círculo de giz caucasiano que nos cerca. Ou que nos é imposto. Como, por exemplo, a de nos induzir a discutir questões éticas dentro do sistema capitalista, se ele, o sistema, é falto de ética? Perguntem ao José Maria Marin, homem íntegro do futebol brasileiro e que chegou a governar São Paulo durante a ditadura.

Alguém aí na platéia conhece a história dos cinco irmãos Rothschild e de como amealharam uma das maiores fortunas do mundo já no início do século XIX? Ou de como se formaram os bancos? A Bolsa de Valores? O que gera o lucro? Ou quais os verdadeiros interesses que fomentam as guerras modernas e as “crises” capitalistas?

Contudo, chega a ser delicado destacar essa ou aquela cena da peça, como a metáfora machadiana do canário, a distribuição de signos do zodíaco pela plateia, a “impressionante” levitação de uma mesa ou a desconstrução de um tema minimalista composto pelo músico estoniano Arvo Part, para muitos uma música celestial, para outros uma espécie de introdução ao estado hipnótico, à catatonia. Nesta sequencia, em particular, serão justos os aplausos para os músicos Elaine Giacomelli e Eduardo Contrera, também diretor musical do espetáculo.

Vou aqui arriscar um lugar comum, uma premissa, se quiserem: o mundo é cheio de contradições! Maravilha de pensamento, não? Profundo, tão original quanto qualquer pensamento do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e muitos de seus sequazes. A partir daí tudo se justifica: a guerra, a injustiça, a exploração do trabalho, as indulgências, os gigolôs da fé, farinha pouca meu pirão primeiro, os juros bancários, as acusações sem provas, a violência contra a mulher, o racismo, todos somos iguais perante as leis, eu não tenho nada a ver com isso… Vá prá Cuba!

Se eu pudesse resumir a uma ou duas frases a montagem do Kiwi, arriscaria fazer as seguintes perguntas: com quantos dogmas se constrói a ignorância? Com quantas verdades se impõe uma mentira? As respostas? Bom, que o leitor arranje um tempinho e vá ao Galpão do Folias em julho e assista a continuação da temporada desse Manual de Defesa Intelectual e terão as respostas da Maíra, da Fernanda, do Latorre, da Maria Carolina, da Elaine, do Contrera e também do Clébio de Souza lá no seu cantinho operando a luz e o som.

A resposta do encenador Fernando Kinas está no final de seu texto no programa da peça:

“Em muitos casos, para além de divergências políticas, culturais ou filosóficas, estão em jogo mistificações e manipulações grosseiras que ganham força pela ausência do debate público plural e informado, e pela tibieza no exercício do pensamento crítico. Isso não significa dizer que seja possível mudar o mundo mudando as idéias (seria outra espécie de idealismo), mas que mudar as idéias exige a mudança do mundo. Nesta dificílima tarefa – citando apenas alguns marcos do pensamento ocidental – Platão não nos ajuda, Descartes e Espinoza deram pistas valiosas e Marx escancarou as portas”.

O problema, Kinas, é que por essas portas escancaradas por Marx entraram muitos oportunistas em seus Cavalos de Tróia… O que não deixa de ser uma atualíssima e necessária reflexão, sobretudo no Brasil atual.

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Manual de autodefesa intelectual | Kiwi Companhia de Teatro
Temporada de 03 de julho a 02 de agosto de 2015, sextas e sábados 21h e domingos 20h
Local: Galpão do Folias – R. Ana Cintra, 213 – Campos Elíseos, São Paulo SP (ao lado do metrô Santa Cecília)
Recomendado para maiores de 14 anos
Ingressos: 20,00 (inteira) e 10,00 (meia entrada)

***

Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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