Duas noções de Justiça para entender a tirinha sobre meritocracia

Na semana passada uma tirinha bombou na internet, por discutir de forma muito contundente o tema da meritocracia. Se você ainda não viu, pode conferir aqui.

Por Guilherme Spadini Do Brasil Port

O debate sobre essa tira fica raso, no entanto, quando se confunde o que significa meritocracia. Para muita gente, defender ideais meritocráticos é ser elitista e conservador. Segundo os últimos quadrinhos da tira, o meritocrata é aquele escroto que fica jogando na cara que pobre tem que ser pobre mesmo, porque é preguiçoso. Quem lê muito literalmente o argumento da tira fica com uma impressão de determinismo social: o privilegiado não tem outra opção além de se tornar um cego social e um elitista preconceituoso. A menos, é claro, que seja iluminado pela razão e rejeite completamente a noção de meritocracia. Mas, será mesmo assim? Vamos por partes.

Primeiro, é preciso entender que existem duas noções diferentes de justiça, que são relevantes nessa discussão: as ideias de justiça como igualdade, ou comoproporcionalidade. O que é justo? Que cada um tenha direito a uma parcela igual de alguma coisa, ou que cada uma tenha direito a uma parcela proporcional, segundo algum critério? Depende, é claro, do que se está dividindo.

Por exemplo: todos têm direito à vida, e o valor de cada vida humana não é proporcional a nada. Independente da contribuição de cada um, esse valor não muda, e todos têm esse direito de forma igual. Isso é assim na teoria. Na prática, no entanto, sabemos que não funciona muito bem. Quem tem muito dinheiro, ou tem uma profissão especializada e valorizada, não vai para a guerra – e não morre na guerra – com a mesma frequência que quem não tem nada disso. Isso é fato – o que não quer dizer que é, necessariamente, justo. Se Alan Turing é um gênio da criptografia, ele vai ficar protegidinho em uma instalação secreta na Inglaterra, e não vai morrer no front. Não ter deixado que ele morresse, na verdade, salvou milhares de vidas. Parece justo.

Quando pensamos na distribuição de renda, no entanto, é senso comum que a divisão proporcional seja justa. Não é consenso, mas é experimentado como justo por quase todo mundo: se eu trabalho cinco horas produzindo X e meu vizinho trabalha dez horas produzindo 2 X, parece justo que ele ganhe duas vezes mais do que eu.

Mas, há controvérsias. A tirinha tenta mostrar uma situação em que um indivíduo ganha muito mais que outro, sem que isso pareça justo. Ele tem um emprego melhor, mais qualificado e, provavelmente, contribui para a sociedade com algum trabalho muito valorizado. Por isso, ganha muito mais do que a moça, que exerce um trabalho menos valorizado. No entanto, isso só aconteceu porque ele teve privilégios. E a moça se esforça tanto quanto, ou mais. Não seria mais justo recompensar a pessoa com a vida mais sofrida, independentemente do valor do seu trabalho? Ela não merece?

Nesse ponto, há outro detalhe importante na ideia de justiça como igualdade: será mais correto pensar em igualdade de recursos, ou de oportunidades? Porque, se pensarmos bem, igualdade de recursos é um negócio bem impraticável. Vamos dividir o PIB igualmente para todo mundo independente de qualquer esforço? Quem resolver pegar esse dinheiro e usar para produzir arte, comida ou produtos úteis para a sociedade vai ganhar, e possuir, sempre o mesmo tanto que quem passar o dia assistindo TV. Parece justo? Além disso, igualdade de recursos materiais é o que deveria encerrar a questão da justiça? Se todo mundo tem a mesma grana, então o mundo está justo? Se alguém viver rasgando dinheiro, vamos continuar dando mais, para que fiquem todos iguais? E, se não for uma questão de dinheiro, igualdade de recursos seria o quê? Igualdade de felicidade? De saúde? De experiências que deem sentido à vida? É complicado.

Talvez, seja mais viável a igualdade de oportunidades. Por esse conceito, uma sociedade justa é aquela que dá a todos os seus membros as mesmas oportunidades. Basicamente, uma sociedade em que todos tenham direito à educação, de verdade e de qualidade, e onde a economia seja suficiente para que não faltem empregos, ou formas de se viver do seu trabalho. É bem utópico, mas, ao menos, algo mais concebível que a igualdade de recursos.

É fácil ver como meritocracia tem a ver com uma ideia de justiça como proporcionalidade. Quem “merece” mais, por algum critério, ganha mais. Mas, mesmo em uma sociedade organizada por um ideal de igualdade de oportunidades, a meritocracia continua valendo. É muito importante dar oportunidades iguais. Só que cada um vai fazer com essa liberdade o que quiser, e vai ganhar recompensas ou sofrer reveses de acordo com suas ações. Isso acabará gerando desigualdades sociais. De recursos, mas não de oportunidades.

Voltando para a tirinha, ela mostra que vivemos em uma sociedade injusta. Será que alguém discorda? É verdade, vivemos em uma sociedade injusta. Há enormes déficits de oportunidades e milhões de pessoas sofrem injustiças por isso. A interpretação que se tem feito da tira, no entanto, erra ao concluir que ela desbanque a meritocracia. Ela aponta uma injustiça social: a desigualdade de oportunidades. A sociedade que corrigir essa injustiça continuará dependendo de um conceito meritocrático de justiça, se pretender ser justa.

Discutido isso, fica mais fácil apontar a falácia mais frequente em toda discussão sobre meritocracia. Construiu-se essa ideia de que o meritocrata é um escroto que acha que o garçom que serve sua comida só não é um industrial milionário porque não se esforçou o suficiente. Isso não é o que pensa um meritocrata. Isso é o que pensa um idiota. Defender a meritocracia não significa ser cego para os problemas sociais, odiar pobres ou achar que se está acima dos outros. Pelo contrário. A questão é ter lucidez suficiente para saber que o caminho para uma sociedade justa, próspera, com oportunidades e direitos para todos, passa por valores culturais como trabalho, dedicação, seriedade e competência. Passa por educação infantil, saúde na primeira infância, parques, museus, acesso a cultura e lazer, esporte. Tudo isso gera pessoas que vão ter orgulho de fazer por merecer. Do outro lado, atacar a meritocracia, como se fosse vergonhoso ter sucesso, é a receita para continuarmos vivendo uma sociedade injusta.

Leia também 

Você só pode discutir mérito entre iguais

+ sobre o tema

“O mundo vai ser negro”, diz filósofo camaronês

Teórico camaronês do pós-colonialismo Achille Mbembe é o homenageado...

Parem de nos matar! – Por Jônatas Cordeiro da Silva

Na segunda-feira de carnaval (12/02), Lucas Almeida, estudante de...

A astuta reprodução do discurso patriarcal nos meios feministas

É assustador como o feminismo midiático se conforma com...

para lembrar

Condenação de Rafael Braga gera revolta

Rafael Braga, único preso das manifestações de junho em...

Candidatos em 2022 têm que ter proposta para desigualdade racial, diz Helio Santos

Candidatos à presidência sem propostas para reduzir as desigualdades...

Eugenia e racismo comunista: União Soviética planejou criar super-homens

A história da eugenia e do racismo comunista na...
spot_imgspot_img

Policiais que abordaram jovens negros filhos de diplomatas no RJ viram réus

Os policiais militares que abordaram quatro adolescentes – três deles negros e filhos de diplomatas – em Ipanema se tornaram réus pelos crimes de...

Os homens que não rompem com a lógica machista

Como uma mulher crítica às plataformas de redes sociais e seus usos, penso ser fundamental termos compromisso e responsabilidade ao falarmos de certos casos....

Cinco mulheres quilombolas foram mortas desde caso Mãe Bernadete, diz pesquisa

Cinco mulheres quilombolas foram mortas no Brasil desde o assassinato de Bernadete Pacífico, conhecida como Mãe Bernadete, em agosto do ano passado. Ela era uma das...
-+=