Travessias da Cor: O caminho mais difícil

Cornélius fez da alfabetização ao ensino superior dentro da penitenciária. O nigeriano tornou-se uma referência de egresso do sistema penal brasileiro

Presos por tráfico internacional de drogas, africanos tentam a travessia do pó, que tem em Fortaleza uma das últimas paradas antes da Europa

Repórter: Melquíades Júnior

Escolher atravessar o Atlântico com drogas pode depender de o quanto essa atividade é tão mais errada quanto não saber se estará vivo no dia seguinte porque sucessivos golpes militares mantêm mais a administração do caos do que de um país.

E quando o desejo é ir embora, mesmo que para um dia voltar ao mesmo caos (desde que com dinheiro), levar alguns quilos de cocaína parece o passaporte para o sucesso. O fracasso desses descaminhos leva homens para o Instituto Penal Olavo Oliveira (IPOO) 2, na Região Metropolitana de Fortaleza.

Para lá vão as “mulas do pó”, como são consideradas, dentre outras, as pessoas usadas pelo tráfico internacional de entorpecentes. A África, um conjunto de 54 países, não produz e é o menor continente consumidor de drogas, mas a figura do africano é a mais associada quando o assunto é o narcotráfico.

O continente mais velho que o “Velho Mundo” europeu é mantido office boy da rota comercial secular em que a América oferece o produto que a Europa consome. Esqueça-se o café e a cana-de-açúcar dos séculos XVII e XVIII. Vem saindo quentinha e refinada a cocaína boliviana, que chega ao Acre, atravessa a Amazônia, aterrissa no Pará e segue para Fortaleza.

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Para o destino seguinte, Cornélius não conseguiu embarcar. Nem Victor. Alfredo também não. São de Nigéria, Cabo-Verde e Guiné-Bissau, respectivamente. Caíram na cada vez mais fina malha da Polícia Federal. E no engano de achar que aeroportos menos movimentados não possuem os mesmos instrumentos de fiscalização.

A cor da condenação

A diferença que expõe os africanos em meio a tantos no Aeroporto Internacional Pinto Martins é a mesma que os iguala e esconde no IPPOO 2, onde predominam vários tons de negro.

Chegando ao Brasil, somente Victor Chukwueienek sabia falar português, língua oficial de Cabo-Verde. A Nigéria foi colonizada pela Inglaterra. Embora, em Guine-Bissau, a língua oficial seja o português, o crioulo ainda é falado pela maioria. Português é a língua da escola. Não frequentá-la, portanto, só aumenta o estigma de ser analfabeto. “Quando a pessoa não tem conhecimento, não tem Deus”, diz Victor. Ele acusa “forças do mal” de terem-no levado para o narcotráfico, ofício que levou por dez anos, desde que foi demitido pelo Ministério das Relações Exteriores de Cabo Verde.

Carentes de defesa, condenados africanos Victor e Alfredo demoram mais na prisão FOTOS: FABIANE DE PAULA
Carentes de defesa, condenados africanos Victor e Alfredo demoram mais na prisão
FOTOS: FABIANE DE PAULA

A dor do crime, antes identificada em alívio, pela sensação de impunidade (já tinha ido várias vezes à Europa transportando cocaína) doeu mais, ou doeu mesmo, com a prisão. O cárcere afastou Victor drasticamente dos seus três filhos. Pouco sabe da vida deles, apenas que estão vivos, trabalhando, e a cada ano somam mais na idade, contada pelo pai distante. Conclui que não sabe nada da vida deles. O cabo-verdiano tem 49 anos e, dos 14 anos e oito meses de privação da liberdade, já viveu sete, praticamente 50% da pena cumprida. “Tivesse um advogado, já teria saído”, afirma.

Cada cabeça ainda tem uma sentença: em fevereiro passado, em Aracaju, capital de Sergipe, o detento Adriano de Jesus Santos foi solto, após cumprir 30% da condenação de 52 anos. Ele é réu confesso de mais de dez homicídios. Após um deles, admitiu ter jogado futebol com a cabeça da vítima.

Consolo na Bíblia

Outro Jesus, o Cristo, é o que tem sido consolo para Victor nos anos de cárcere. Tanto que lê a Bíblia todos os dias. “Encontrei o caminho”. Às quartas e quintas deixa de ser só mais um detento na Cela 28, Vivência 1, para ser o irmão Victor, pastor evangélico.

Espera ainda neste ano obter autorização para o regime aberto. É quando ficará mais próximo da esposa, que conheceu em Fortaleza, e da filha de dez meses. Agora, pai de uma brasileira, têm direito a visto permanente. “Tenho uma vida aqui. Quando sair, quero ir a Cabo Verde só a passeio”. É comum, entre os detentos africanos, depois de alguns anos no País, terem filhos brasileiros. Conhecem as mulheres nos dias de visita.

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Quem não sabe se vai poder ficar no Brasil quando sair é Alfredo Cabral. Tem uma filha brasileira de três anos, mas, ao contrário do colega cabo-verdiano, ainda não conseguiu registrar a menina em seu nome. “A gente fica dependendo muito do juiz. Se não quer, não autoriza, vão deixando pra lá, pro próximo juiz”.

Nova vida

Essa angústia já foi superada por Cornélius Ezeokeke, “Colins”, para os colegas detentos. Quando ganhou a liberdade, viajou para Recife para buscar a filha, Bruna Vitória, que, à época, estava com sete anos e era cuidada por amigas da mãe, branca, brasileira, também presa ao tentar viajar para a Europa com cocaína na bagagem. Enquanto tenta manter as poucas lembranças da mãe, Bruna constrói a relação com o pai, negro, africano e ex-presidiário. “Você não pode ter vergonha do seu pai”, diz hoje à menina de 12 anos.

Cornélius fez do que já foi vergonha motivo de orgulho. Não, ninguém se orgulha de ter sido preso. Orgulho do depois. “Eu sempre digo que não importa o que fizeram conosco. Importa agora o que fazemos com o que fizeram conosco”, afirma. Antes mesmo das grades do IPPOO 2, em Itaitinga, município da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), o nigeriano precisou aprender Português. Foi sua primeira estratégia de sobreviver ao regime do sistema penal e, paralelo a isso, ao sistema criado pelos próprios presos.

“Pagava o aluguel da cela. Quando é para ver de mal, a África é um lugar pobre, mas quando tem interesse próprio, o estrangeiro, não importa de onde, é visto na cadeia como uma pessoa que tem dinheiro. Estrangeiro tem dinheiro”.

Mas estrangeiro não tem advogado. É comum aos condenados por tráfico internacional aguardarem o amparo jurídico de um defensor público, que nem sempre vem. O que não veio para Cornélius. Ele foi atrás. Quando lhe foi recusado habeas corpus, mesmo em cumprimento da pena em que o juiz em primeira instância sentenciou, sem qualquer pronunciamento de um advogado de defesa nem o defensor ter arrolado as testemunhas do processo, Cornélius foi atrás de novo.

A sentença em seu favor, sob alegação de que não foi permitido defesa, só foi conseguida anos depois, por meio de decisão do ministro César Pelluzo, do Supremo Tribunal Federal (STF): “o paciente teve cerceado o direito de defesa, pois seu advogado regularmente constituído não foi intimado para os atos processuais”. O judiciário foi apenas uma das travessias de Cornélius. A barreira da língua, sua segunda prisão, foi vencida ao ser alfabetizado na penitenciária, além de cursar os ensinos Fundamental e Médio.

Quando o pai de Bruna Vitória queria mais, correu atrás: em carta ao professor e padre Pietro Sartorel, do Instituto de Ciências Religiosas da Arquidiocese de Fortaleza, falou do desejo de cursar bacharelado em Teologia, teoricamente impossível em um regime fechado. Foi quando a instituição tentou, e conseguiu, junto ao Ministério da Educação o que se tornou o primeiro curso superior dentro de uma penitenciária do Nordeste. “Nada do que conquistei foi fácil” até pode soar fácil para alguns, quando entre os que dizem está Cornélius Ezeoeke.

Negro, africano, egresso do sistema penal brasileiro tornou-se uma espécie de troféu para a Secretaria da Justiça do Estado do Ceará (Sejus), onde trabalha – e o único lugar onde diz terem-no aceitado. Mas com pós-graduação em Segurança Pública, dois livros publicados – “Penas mais rígidas: justiça ou vingança?” e “Paradoxos do Cárcere” – e dezenas de palestras onde é convidado, Cornélius tem que se contentar com um contrato terceirizado como eletricista.

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