1.709 bebês com microcefalia abandonados pelo Estado

Mães denunciam descaso do governo com acompanhamento médico das crianças. A maioria teve que largar o emprego para cuidar do filho sozinha ou passar madrugadas diante de hospitais. Resta a penúria

Por LAIS MODELLI, do AzMina 

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*Esta é uma das investigações patrocinadas pelo Programa de Bolsas de Reportagem da Revista AzMina que você ajudou a tornar realidade. Leia o restante desta série aqui.

Em 2015, a comerciante baiana Josiane Gomes Santana, 36 anos, de Salvador, descobriu que estava grávida pela quarta vez. Agora, de gêmeos. Depois de se recobrar do susto de descobrir que viriam dois bebês de uma só vez, a comerciante continuou sua rotina de grávida, indo nos médicos e fazendo acompanhamento.

No sexto mês de gestação, porém, um de seus bebês parou de se desenvolver. “Até então eu achava que meus filhos seriam normais”, conta. “No sétimo mês, me internei e fiz um ultrassom. A médica chegou na sala e falou que um dos bebês tinha microcefalia. Minha única reação foi perguntar o que era aquilo. Eu tinha ouvido falar em hidrocefalia, não em micro. Quando ela me explicou o que era, entrei em pânico, fiquei muito assustada”, lembra Josiane.

Receber um diagnóstico como este não é fácil, mas é importante que ele venha o quanto antes, preferivelmente ainda durante a gestação, para que os pais se preparem econômica e psicologicamente e adequem a casa para a chegada deste bebê com necessidades especiais. Josiane, por exemplo, conta que foi fundamental descobrir antes do nascimento. “Conforme os médicos foram me explicando o que era a microcefalia, eu fui aceitando e me preparando para o parto. Quando eles nasceram, eu já sabia que minha vida mudaria”.

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A notícia

A comerciante Aline Barbosa Oliveira, 28 anos, já havia perdido um bebê. Por isso, quando recebeu a notícia de que estava grávida de novo, logo no mês do Dia das Mães, ficou radiante.

Tudo corria bem até que, na 12ª semana de gestação, os sintomas de uma intoxicação vieram abalar a felicidade da moça. “Fiquei totalmente embolada e febril por um dia. Os médicos diziam que esses sintomas eram uma alergia resultante de uma intoxicação alimentar. Fiz um tratamento e continuei acompanhando a gravidez, com dois médicos diferentes, porque me deu muito medo perder o segundo filho também”. Nenhum dos dois profissionais detectou que a intoxicação alimentar de Aline era, na realidade, o Zika vírus.

Com 19 semanas de gestação, em agosto de 2015, Aline e o marido descobriram que o filho, Pedro, nasceria com algum problema, mas os médicos ainda não sabiam qual seria. “Naquele período, ninguém falava ainda em Zika ainda”, conta Aline.

A primeira desconfiança dos médicos é que Pedro nasceria com hidrocefalia e que Aline teria que fazer uma cirurgia intrauterina para drenar o líquido da cabeça do neném. “Começou então um período horroroso para nós”, conta Aline, que na época morava em Vila Velha, no Espírito Santo. “Todos os médicos que eu frequentava eram particulares, não confiava no sistema público de lá. E mesmo os particulares me recomendaram viajar para São Paulo para fazer exames. Foi em um ultrassom feito na capital paulista que vimos que o Pedro tinha a cabeça menor que a média”. Somente na 22ª semana é que Aline teve a confirmação de que seu neném teria microcefalia.

Aline-mãe-do-Pedro-1

Em setembro de 2015, com a confirmação da relação entre zika vírus e microcefalia, a gravidez de Aline começou a ser investigada. Através da análise da placenta, confirmou-se que a má formação havia sido causada pela infecção.

Saber se um filho terá microcefalia ou não pode ser uma agonia que dura uma gestação inteira, já que nem todas as mães conseguem antecipar a notícia, como aconteceu com Josiane e Aline.

Natalia Campos de Assis, 20 anos, de Monte Mor, interior de São Paulo, descobriu somente no parto que sua primeira filha, Eduarda Vitória, tinha microcefalia. “Tive dores durante a gravidez toda e ia sempre nos médicos fazer exames, mas nunca me alertaram de nada”, lembra. No oitavo mês, Eduarda Vitória nasceu, prematura.

“Eu me assustei com a cabecinha dela, parecia que estava tudo para dentro. O médico disse que ela não viveria nem três dias ou, se sobrevivesse, ia ser vegetando”. Naquele momento, Natália descobriu que sua filha tinha microcefalia. “Para mim, foi negligencia dos médicos eu não descobrir antes que minha filha teria a doença. Se me falassem antes, eu ia me preparando para quando ela nascesse, não ia ser no susto”, conta.

O papel do Estado nos casos de microcefalia

O filho de Aline, Pedro, nasceu em fevereiro, no Espírito Santo, e passou 15 dias na UTI por não conseguir mamar em razão de um problema de deglutição. Quando foi para casa, começou outra luta.

“As coisas estão muito precárias em Vila Velha. Assim que o Pedro nasceu, eu entrei na fila para ele ser atendido na APAE”, relata Aline. “Me falavam que quanto mais rápido começássemos os estímulos no bebê, menores seriam os atrasos lá na frente. Então, comecei a ver vídeos no YouTube e eu mesma fazer exercícios com o Pedro, já que ele não conseguia ser chamado e atendido”.

Na terceira reportagem desta série, o neurologista pediatra Marco César R. Roque explicou que os cuidados e estímulos a um bebê com microcefalia devem ser imediatos, com acompanhamento, principalmente, de fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos. Segundo o médico, todos esses atendimentos deveriam ser oferecidos pelo sistema público, porém a estrutura que existe hoje é incapaz de atender a todos os brasileiros nessas condições. “O SUS está muito longe de ser eficiente, já que são poucos os lugares que oferecem serviços específicos para esses pacientes”, explicou Marco, lembrando que o número desses pacientes tem crescido cada dia mais depois do surto, mas sem o SUS acompanhar o ritmo em acréscimo de vagas.

Aline conta que, ao ver Pedro completar dois meses de vida e não conseguir nenhum atendimento, resolveu se mudar do Espírito Santo. “Me bateu um desespero tão grande que eu e meu marido vendemos tudo o que tínhamos e fomos para São Paulo em busca de atendimento para o Pedro”. Faz dois meses que a família está em Campinas, cidade dos pais de Aline, sem trabalho e na casa dos pais dela, mas com atendimentos garantidos ao filho. Hoje o bebê faz até natação. “Aqui em São Paulo tem atendimento, mas é tudo muito perdido e longe. Se você não se informar e for atrás, não consegue”, se queixa a mãe, contudo.

Apesar de ter os atendimentos na APAE e os médicos pelo SUS, Aline reclama que os gastos com remédios, fraldas e leite são muito altos. Assim como a maioria das crianças com microcefalia, Pedro tem que tomar diariamente anticonvulsivos e ter uma alimentação específica. “Por mês, de remédio, a gente gasta em torno de R$120 a R$150. Além disso, ele não mama no peito, então tenho que comprar uma lata de leite por semana”. O valor de cada lata é R$50.

Natália também tem as mesmas reclamações de Aline quanto aos gastos. “Não recebo nenhum auxílio da prefeitura, não posso trabalhar porque meu tempo é só para cuidar da minha filha. Só recebo Bolsa Família. Minha família me virou as costas e minha mãe, que é gari e passa por dificuldades, é quem me dá as fraldas do mês”. Natália foi morar com a família do pai da criança e, mesmo os dois estando separados, ela decidiu ficar na casa por causa da filha.

De todas as mães ouvidas pela reportagem d’AzMina, Josiane foi a que conseguiu atendimento mais fácil, na Bahia. “Em Salvador teve muitos casos, então o SUS está dando prioridade para esses bebês. Acredito que conseguir atendimento aqui está sendo mais fácil que em outros lugares, mas não sabemos até quando teremos essa prioridade, porque essa crise já está engolindo muita coisa por aqui”, reclama a comerciante.

“A imunidade do meu filho é muito baixa e ele pega muita gripe, então vamos para a emergência nesse tempo mais frio. Outro dia, chegamos lá e a médica não quis nem vê-loporque disse que provavelmente ele, por ser microcéfalo, precisaria de um leito e lá não tinha lugar. Mas ela nem olhou para ele, nem me deixou entrar no consultório e meu filho estava sufocado. Tive que correr para outro bairro para meu filho ser atendido e internado”, denuncia Josiane.

Por morar com irmãos e sobrinhos e receber ajuda deles, Josiane é a única das mães que não saiu do trabalho com o nascimento do filho. Ela trabalha no bar do seu pai e ganha cerca de R$450 por mês. O pai dos gêmeos é separado de Josiane. Ele está desempregado e só ajuda quando pode, seja com dinheiro ou levando os filhos nos médicos.

“Nosso sustento vem de lá, não posso não trabalhar. Eu ganho Bolsa Família, mas é uma besteira diante dos gastos, por volta de R$140. Agora estou correndo atrás do benefício que o meu filho Bernardo tem direito. Estamos agendados para sermos atendidos no INSS”. Josiane se refere ao benefício de Prestação Continuada, pago pelo governo federal e assegurado por lei, que permite o acesso de idosos e pessoas com deficiência a uma renda de um salário mínimo por mês. Mas para poder receber o benefício, a renda familiar deve ser inferior a 1/4 do salário mínimo.

“Eu e meu marido estamos desempregados desde o nascimento do Pedro, mas ainda não conseguimos o benefício”, conta Aline. “É vergonhoso: o governo estipula que, para conseguir o benefício, cada pessoa da casa tem que ganhar R$200. Como eu estava recebendo o dinheiro de licença maternidade, porque eu pagava particular durante a gravidez, não tive direito a receber o BBC. Os gastos com o Pedro são muito grandes, então agendei outro atendimento no INSS, já que a minha licença maternidade termina este mês e meu marido ainda está desempregado”.

Josiane e Natália também entraram com pedido no INSS para receber o benefício, mas até agora, com quase um ano de vida dos bebês, ainda não conseguiram. Natália é a mãe que está a mais tempo esperando uma resposta do governo: cinco meses.

Uma geração de bebês microcéfalos: de quem é a culpa?

Somente no mês de julho deste ano, mais outros 22 casos de microcefalia foram confirmados. No período, também foram confirmadas mortes de 102 bebês em decorrência da anomalia. O número mais recente demonstra que já são 1.709 bebês com microcefalia desde novembro. Os dados são do Ministério da Saúde.

Grávidas foram orientadas a passar repelente para se protegerem do Aedes Aegypti e a usarem preservativo nas relações sexuais por causa da transmissão do Zika vírus; as mulheres em geral foram “aconselhadas” pelo governo federal a não engravidarem. Em poucos meses, o surto de Zika vírus causou pânico na população nacional e internacional.Cerca de 170 cientistas pediram à Organização Mundial da Saúde, OMS, e ao Comitê Olímpico Internacional que alterem as datas ou a sede dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. O medo do Zika vírus no Brasil correu o mundo.

As orientações do governo, apesar de necessárias, foram isoladas e levaram parte da população a acreditar que o culpado desses casos de microcefalia não era o Estado, segundo explicou a médica infectologista Érika Fontana Sampaio (leia entrevista completa aqui), mas sim as próprias mulheres.

Todas as mães relataram ter ouvido questionamentos sobre o que elas “fizeram” para seus filhos nascerem com microcefalia.

“Me perguntavam muito quando a mídia falava mais em Zika vírus: ‘nossa, mas você não usava repelente?’, como se a culpa da microcefalia do Pedro fosse minha”, conta Aline.

Em resposta à postura do governo brasileiro e de outros governos sulamericanos, o Alto Comissário para os Direitos Humanos da ONU, Zeid Ra’ad al-Hussein, rebateu em um comunicado: “o conselho dado por alguns governos às mulheres para que evitem engravidar ignora que muitas delas não têm qualquer controle sobre o momento ou as circunstâncias nas quais podem ficar grávidas, especialmente onde a violência sexual é bastante habitual.”

Segundo os médicos ouvidos pela reportagem, o problema do surto de Zika vírus revelou uma incompetência do Estado com saneamento urbano. Para os profissionais, pedir para as mulheres não engravidarem não resolverá o problema de recém-nascidos com microcefalia no Brasil. Assistência estatal aos já nascidos e combate ao mosquito, sim.

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