27 anos contrariando as estatísticas: Estratégia de autocuidado para lutar contra o racismo

Permaneço viva, prossigo a mística…

Racionais Capítulo 4, Versículo 3

Por Tamillys Lirio, do Medium

Arte via Instagram por @ikeslimster

Esse ano tive uma das piores crises desde meu diagnóstico de hipertensão (3 anos atrás) e percebi que poderia morrer por isso. Parei num pronto socorro do SUS com a pressão a 17/11*, acompanhada de desmaios e uma dor de cabeça insuportável.

Lembro de ver flashes do meu marido correndo, catando os remédios que estavam em falta e de pensar que morreria ali com um AVC, por não ter os medicamentos básicos como captopril e dipirona.

Foi necessário que eu percebesse a fragilidade da minha vida, para lembrar da sua importância. Afinal, de que adianta ser embativa, conhecedora de todos os paranauês do histórico racista brasileiro, a mamãe sabe tudo das complexidades raciais e esse FDP do racismo me adoecer e me matar?


É contra isso que lutamos, certo? Contra o extermínio dos jovens negros, contra as mazelas de um sistema desumanizador que coloca nossos corpos como objeto, contra esse mal que só a vítima (as vezes nem ela) percebe.

Mas será que tem sido uma briga justa? Será que eu estava no caminho correto?

Durante muito tempo cuidar de mim foi um detalhe no meu cotidiano. Imersa num mar de preocupações (esse ano soube castigar, não é?) eu fazia de tudo um pouco, me preocupava com Deus e o mundo e negligenciavameu próprio corpo. Pode parecer louco, mas era isso, eu jogava meu corpo de um lado para outro na rua, em rotinas e horários confusos, me alimentando pouco e muito mal, bebendo pouquíssima água.

– Mas garota, todo mundo tá batalhando também, me diga um só que não viva dessa forma, ou mesmo pior, até porque tem gente que não tem o básico do básico!

Simmm. E eu não poderia lutar contra o racismo e não reconhecer que sinto bem menos o pisão de muitos fatores sociais, por ter acesso ao conhecimento, ou de gênero e sexualidade, por ser cis e hétero**. Mas gostaria de lembrar que também não sou poupada. Não deixo de ser afetada pela grave crise financeira e política, não deixo de ser afetada pelo racismo, pelo machismo e também passo meus bocados pessoais.

Arte via Instagram por @artbywak

Acontece que quando a gente “embrenha” nessa de movimento social, a ideia de que o importante é o coletivo, pode esmagar nossas subjetividades. É que quando aprendemos sobre UBUNTU¹, introjetamos a ideia de que nosso corpo é feito de muitos outros corpos, que nossa existência é construída por muitas outras existências e por muitas vezes o “eu” passa a ser o nosso, ou o que os “outros” decidirem.

E óbvio que esse lema (ou qualquer outro) em distorção, ou extremismo não é legal!

Nessa de priorizar o coletivo, de ser parte de um todo, eu me submeti à situações destruidoras. Por vez ou outra individuos dentro dos movimentos, vestindo suas capas de “desconstruidões“, usam seus espaços para oprimir, para cometer abusos e agressões, para reproduzir o comportamento de nossos algozes. Mas já dizia Mano Brow…

“Tem mano que te aponta uma pistola e fala sério.
Explode sua cara por um toca fita velho!
Click, plau-plau-plau e acabou, sem dó e sem dor, foda-se sua cor”

Esse tipo de atitude, somada aos problemas de grana, foram alguns dos elementos mais adoecedores desse ano e culminou na minha crise hipertensiva e também na minha mudança de postura.

No dia do mau estar, eu estava sem comer, com TPM, sem meu remédio diário de hipertensão, sem dinheiro. Tava rolando uma briga idiota, por coisas sem nenhum sentido no grupo de ativistas no whatsapp, o meu marido estava na rua, também envolvido numa treta de ativismo. Foram os ingredientes para a bomba explodir no meu colo. Eu prometi nunca mais passar por isso, não por situações que eu possa evitar e me poupar.

Óbvio que não dá para escapar de tudo, estamos sujeitos à diversas violências cotidianas, mas certas coisas devem ser repensadas.

Quantas e quantas vezes deixamos aquela ida ao médico, para um check-up​, de lado? Por que banalizamos essa dor de cabeça, essa cólica, essa tontura? Por que deixamos de beber água?

Por que acreditamos que uma noite com muito álcool vai curar nossas dores?

Quanto à saúde mental sei que é caro e muito inacessível para a maioria, mas se possível faça, procure ajuda psicológica.

Por que passamos horas discutindo com pessoas que não valem a pena?

Por quê?

Se temos que agir com estratégias concretas contra o racismo, devemos começar com o que está ao nosso alcance, cuidando dos detalhes que atropelamos nesse mundo louco e isso passa por se afastar de pessoas tóxicas, de comportamentos tóxicos, de fatores que se somam e só nos massacram. Significa também parar, ouvir os mais velhos, se recolher e se preservar. Tenho 27, quero ter 30, quero chegar bem quem sabe aos 80. Para isso tenho que cuidar desse corpo alvo de racismo, tenho que pensar nesse escudo carnal dos piores olhares, tenho que ter estratégias para conseguir ser uma daquelas velhinhas enrugadinhas de cabelo branco.

Envelhecer deve ser um objetivo! Envelhecer com saúde, bem estar, dentro de nossas realidades, mas envelhecer! Para poder continuar construindo um SUS melhor, mais humanizado e pautado na política de saúde integral da população negra. Envelhecer para poder seguir lutando contra o racismo!

Aqui não é o primo preto, mas é uma sobrevivente…

*17/11 — pressão arterial considerada alta, o ideal é que esteja igual ou inferior a 12/8

**cis — cisgênero = pessoa que se identifica com o gênero (social) e a genitália (biológica)

**hetero — pessoa que se relaciona com o gênero oposto

¹ UBUNTU — “Eu sou porque nós somos”, filosofia Bantu que pressupõe que estamos ligados através de nossa condição de humanos.

“Com o Ubuntu operou-se a mudança da concepção da identidade a partir do ‘eu sou porque tu não és’ (concepção excludente) para o ‘eu sou porque nós somos, e dado que somos então eu sou’ (concepção includente)”. Presente em http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/42253/ubuntu+filosofia+africana+confronta+poder+autodestrutivo+do+pensamento+ocidental+avalia+filosofo.shtml

 

Tamillys Lirio

Mulher negra, Psicóloga. Presidente na ONG Nação Basquete de Rua

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