‘Essa é a história de Cécile. Ela é uma menina normal, como eu e você. Cécile é linda, inteligente, engraçada, mas muito tímida. Cécile gosta muito de maquiagem, mas nunca comprou nada, muito menos provou algo no seu rosto. Ela tem vergonha de que a olhem diferente, que a chamem de palhaço, que zombem por ela colocar algo diferente em sua pele preta. Toda semana ela compra revistas de moda e perde horas do seu dia lendo. Cécile olha as mulheres das revistas, todas diferentes dela, mas muito bonitas. Ela adora o fato de que todas as mulheres nas revistas usam maquiagem e isso fica bem nelas. Mas Cécile não se enxergar nessas mulheres. Ela lê tutoriais, sabe fazer tranças em cabelos lisos. A última revista que ela comprou, tinha uma matéria muito importante sobre como não ficar rosada no frio.
Por Naomi Faustino, do The Black Cupcake
Um dia, lendo essas revistas, Cécile se deparou com uma reportagem sobre uma mulher que havia ganho um Oscar e o prêmio de mulher mais bonita do mundo. Ela se chama Lupita e parecia muito com Cécile. Ambas tinham a pele escura como a noite, cabelos pretos e crespos. Ambas eram lindas, cada uma a sua maneira. Pela primeira vez, Cécile se viu em uma dessas revistas. Ela estava maquiada, com sombras coloridas e bonitas. Cécile ficou encantada pelo fato de que ela não tinha vergonha de usar cores vivas. Em todas as fotos ela aparecia sorrindo e feliz. Cécile arrancou a foto da revista e a colocou ao lado da cama. Cécile queria ser Lupita e dormiu sonhando que era.
Na manha seguinte, ela pegou a folha da revista e correu para a perfumaria. Era uma loja grande, cheia de produtos, de batons do tom rosa claro ao laranja-rocket-power-brilha-no-escuro. Ela ficou fascinada e caminhou até a prateleira de bases, pós compactos e pancakes. Mas ao chegar lá, o sorriso desapareceu. Na sua frente, um mar de tons de bege apareceu. Bege claro, bege médio, bege escuro-mas-não-marrom, bege claro-quase-branco, bege-assim, bege-assado. Na sua frente havia 50 tons de bege.
Na contra mão do cenário econômico atual, o mercado da beleza brasileiro está em ascensão. Nem a inflação, nem a desaceleração econômica impediram as mulheres de consumirem produtos de beleza. Diferentemente de outros países do mundo, a mulher brasileira tem uma forma única de se cuidar, utilizando diariamente diversos tipos de produtos para pele e cabelo. O que me impressiona, é que em um país tão focado em estética, as mulheres negras, que são mais da metade da população feminina, ainda continuam marginalizadas.
Cécile é uma das muitas mulheres que são invisíveis para indústria da beleza brasileira. Quem já olhou as escalas de cores das bases produzidas por empresas nacionais, além das bases importadas das grandes marcas internacionais, sabe doque eu estou falando. Normalmente, as escalas de cores apresentam apenas um tom escuro, tendo nos outros uma variação de bege. Esse tom escuro não satisfaz a diversidade da pele das mulheres negras. A indústria da beleza nos coloca como uma única cor, generalizando a nossa beleza e esquecendo que somos muitas. E isso não ocorre só com as maquiagens, mas com produtos específicos para cabelos crespos, entre outros.
O uso da maquiagem oferece à mulher a capacidade se olhar, de se tocar, de saber o que combina com a sua cor, o que a agrada, ou não. O uso da maquiagem empodera as mulheres, principalmente as negras, que não conseguem se ver nas revistas, que se acham feias, uma vez que estão sempre marginalizadas, e que são vistas como menos atraentes (mesmo sendo sempre sexualizadas).”Mas e quem não usa maquiagem?”, quem não usa maquiagem, entendeu que aquilo não a agrada, aquilo não a faz bem e que ela se sente bem consigo mesma sem nenhum enfeite. Não é errado usar, muito menos não usar. O errado é um sistema inteiro escolher por nós o que usar, ou não usar.
“Não sou eu uma mulher ?“¹ A indústria da beleza não nos vê e não apresenta respostas concretas para isso. Será que eu não sou uma mulher? Será que eu sou uma besta, uma fera, um animal, que não pode se tocar, que não pode se pintar? Será que eles estão nos fazendo um favor e eu não entendi até agora? Será que eu não sou uma mulher digna de ter algo produzido para mim? Será que eu não sou alguém? Por que a indústria da beleza não nos vê? Como estudante de uma escola de negócios, sei que o objetivo principal de toda empresa é lucrar. Sei também, que na atualidade, é quase impossível existirem setores inexplorados, principalmente tão lucrativos como esse. Qual será o real motivo? Seria o racismo estrutural agindo novamente sobre nossas cabeças? Se as mulheres negras começarem a tomar conta dos setores estratégicos da indústria da beleza, o padrão eurocêntrico de beleza vem a baixo? Seria o sistema racista brasileiro tentando ao máximo que as mulheres negras se isolem? Não somos mulheres afinal de contas?
Todos os desenhos para ilustrar esse post foram feitos pela magnífica Yna Santos.
¹ Refêrencia ao discurso de Sojourner Truth, ‘Ain’t I a woman?‘