Como ‘Pokémon Go’ vira um mapa da desigualdade

“Pokémon Go” é um jogo que capturou como poucos o imaginário das pessoas. O grande poder de nostalgia da franquia de monstrinhos aliado à realidade aumentada fez com que o game entrasse para a história como o título mobile mais distribuído e lucrativo da história, arrecadando US$ 200 milhões em seu primeiro mês.

Por Guilherme Solari, do Catraca Livre 

Mas o mais interessante do título é como ele usa o GPS dos celulares para tornar a cidade inteira onde você mora o seu campo de jogo. “Pokémon Go” efetivamente tirou os games de dentro dos celulares e o levou para as ruas (não reclamavam que as crianças não saíam de casa pra ficar no videogame?), os escritórios, onde as pessoas transitam e moram. Ao mesmo tempo em que ele cria um novo front de reconexão das pessoas com o espaço físico onde habitam, traz de volta à tona o debate sobre a segurança pública. E também acaba indiretamente mostrando no jogo a desigualdade do nosso mundo nada virtual.

Antes mesmo de “Pokémon Go” ser lançado no Brasil, veículos americanos já haviam apontado como bairros negros dos EUA tinham muito menos pokémon, pokéstops (pontos onde os jogadores recarregam suas bolas de capturar monstrinhos) e ginásios (onde eles se enfrentam). Aqui no Brasil também, diversos usuários relataram nas redes sociais que bairros da periferia e cidades do interior são verdadeiros “pokédesertos” sem monstrinhos para capturar, ou pontos de referência. Veja como exemplo os mapas de pokéstops do bairro de Capão Redondo (periferia de São Paulo) e da região da Avenida Paulista (região central da cidade), segundo o site Mapa Pokémon Go.

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Créditos: Reprodução

Mapa de ginásios e pokéstops na região da Avenida Paulista (região central de São Paulo) pelo site mapapokemongo.com.

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Créditos: Reprodução

Mapa de ginásios e pokéstops na região do Capão Redondo (periferia de São Paulo) pelo site mapapokemongo.com.

Pode-se argumentar que existe uma clara diferença de densidade populacional nos bairros, mas comparativamente observa-se uma diferença muito maior entre a classe social dos bairros (assim como bairros de minorias) do que de população. O motivo não seria um preconceito pela Niantic, a empresa responsável pelo game, mas de onde ela pegou as informações para criar as referências geográficas do game: os próprios usuários.

Mundo virtual, desigualdade real

Esses pontos foram criados baseado em um jogo anterior da Niantic para smartphones, o Ingress. Apesar de não ter o sucesso estrondoso de “Pokémon Go”, o game lançado em 2013 possui uma base de alguns milhões de jogadores, que lutam por pontos de referências nas ruas. E ele permite que os próprios usuários marquem locais importantes, como igrejas, estátuas, pontos turísticos, para formarem o campo de batalha do game.

E aí que se esconde a desigualdade na distribuição de pontos de “Pokémon Go”. O game anterior, um tanto obscuro, é jogado em sua grande maioria por uma audiência interessada em tecnologia e, mais importante, com o dinheiro para utilizá-la. Celulares um pouco mais antigos também não rodam o “Ingress” (ou “Pokémon Go”), além de bairros violentos desestimularem as pessoas a saírem por aí buscando bichinhos virtuais com o celular na mão. Jogadores americanos chegaram a falar que jogar “Pokémon Go” sendo negro seria uma “sentença de morte”, dado o histórico de racial profiling (negros serem abordados pela polícia especificamente por sua cor) dos EUA.

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Créditos: Reprodução

Imagem do Ingress, jogo anterior que serviu de banco de dados para Pokémon Go”

Talvez o mais preocupante seja como esse mapa de desigualdade cria um círculo vicioso. Jogadores da periferia e cidades pequenas precisam pagar por itens que jogadores de regiões mais abastadas têm de graça, como as pokébolas. Gamers dessas regiões também ficam por fora da atmosfera do jogo, fazendo com que se afastem ainda mais de uma tecnologia que está em pauta na sociedade e dificultando sua entrada em games posteriores.

“As pokéstops são sugeridas pelos usuários, então, obviamente elas estão baseadas em lugares aonde as pessoas vão,” disse em entrevista ao site Mashable, o CEO da Niantic, John Hanke. “Nós tivemos, essencialmente, dois anos e meio de pessoas indo a todos os lugares onde elas pensavam que deveriam jogar Ingress, então há locais até bem remotos. Há portais na Antártida e até no Pólo Norte.”

Podemos ter pokéstops na Antártida e Pólo Norte, mas nenhum no centro do Capão Redondo. E é uma desigualdade que não vai embora tão cedo. A Niantic fechou as submissões de novos portais no Ingress em setembro de 2015. Uma opção para pedir a abertura de novos pokéstops e ginásios existe (aqui, em inglês), mas a empresa faz silêncio sobre se eles serão de fato criados. É triste ver como até mesmo em um simples jogo de caçar bichinhos virtuais acaba vazando a bem real desigualdade da nossa sociedade.

Guilherme Solari

Escritor e jornalista, que cuida das editorias de Dica Digital e Cultura em Casa. Leitor voraz de ficção científica, faz resenhas literárias no canal Guilherme Solari Tube.

 

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