MC Carol é o Brasil que deu certo

Carolina de Oliveira Lourenço já viveu sozinha num barraco sem porta nem janelas, já foi vítima de tentativa de feminicídio, já esteve com um pé na política, já sabe que é impossível superar o assassínio da sua amiga Marielle Franco. MC Carol tem muito para contar e para cantar. Nome de relevo do funk carioca, estreia-se em Portugal neste fim-de-semana com concertos no Serralves em Festa e na ZDB.

Por Mariana Duarte, Do Publico

MC Carol- mulher negra de cabelo liso na altura dos ombros- com as mãos estendidas.
MC Carol (Foto: Márcio Alves / Agência O Globo)

MC Carol nunca mais se esquece daquele dia em que chegou a casa das aulas e disse ao bisavô que queria “trocar de cor como o Michael Jackson”. “Não aguentava mais ser negra. A minha escola era extremamente racista”, recorda em conversa com o Ípsilon. Era a única menina negra na turma, numa escola que ficava fora da favela onde vivia. Nesse dia, antes de ir dormir, o bisavô chamou-a para conversar. “Ele falou uma coisa que eu levo para a vida inteira: que eu não tenho de me importar nem com o ódio nem com o amor de ninguém.”

Hoje, aos 25 anos, Carolina de Oliveira Lourenço diz com um sorriso na cara que ser “negra e gorda é virtude”. A menina criada “com muita liberdade e auto-estima” pelos bisavós no Morro do Preventório em Niterói, no Rio de Janeiro, virou MC Carol e tornou-se um nome de relevo do funk carioca, com canções em que denuncia o racismo, a violência contra mulheres e a dura realidade das favelas, ao mesmo tempo que exalta o seu corpo e o seu apetite sexual, com humor, ardor e despudor. Eis MC Carol, funkeira da resistência e do deboche, fã de Nina Simone e de música grega, activista, ex-candidata a deputada estadual, amiga de Marielle Franco — ela vai estar pela primeira vez entre nós no Serralves em Festa, no Porto, na noite de amanhã, 1 de Junho, e na ZDB, em Lisboa, no domingo, dia 2, em modo matiné.

Falámos com MC Carol uma semana antes de chegar a Portugal e poucos dias depois da sua actuação na Virada Cultural de São Paulo (evento-barómetro da cada vez mais estrondosa cultura contemporânea brasileira), curiosos com um vídeo desse concerto que apanhámos na sua hiperactiva página de Facebook: em cima do palco, um homem traduzia para língua gestual brasileira a letra da canção Hoje eu vou jogar, onde abunda a palavra “xota” (vulgo, vagina). “Não foi ideia minha, mas quem me dera que todos os concertos tivessem isso”, diz a cantora e compositora, sublinhando a importância de medidas de inclusão social na cultura. “Foi uma ideia muito boa e foi muito divertido ver ele fazendo aqueles gestos.” Também foi para isto que ela entrou no funk carioca: para se divertir.

Fazer música não estava nos seus planos, muito menos fazer funk. Ele não entrava lá em casa. Cresceu a ouvir Elis Regina, Cartola, Roberto Carlos, Nelson Cavaquinho, Benito di Paula. Cresceu a pensar que um dia ia ser polícia, mas na escola a sua criatividade ia noutra direcção. “Desenhava muito, escrevia umas frases, uns poemas… Aos 15 anos já tinha um caderno com 30 músicas”, conta. Foi também com essa idade que teve de ir viver sozinha, na sequência da morte do bisavô. Morava num barraco sem porta nem janela. Chovia lá dentro. Trabalhava aqui e ali para conseguir sobreviver, incluindo cantar em bailes funk das favelas. No meio disto tudo, e apesar disto tudo, havia uma carreira musical a ser construída. “As coisas aconteceram muito rápido. Em três meses gravei um DVD muito famoso de funk aqui no Rio e quando ele foi lançado já estavam a chamar-me para participar em programas de televisão, para tocar em rádios, para viajar.”

Sexo sem complexos

Desde o início que o seu objectivo era fazer música sobre “o quotidiano”. “Eu queria falar sobre a minha realidade, de forma engraçada. Pôr a minha vivência ali.” E é daí que vêm também as canções lambuzadas a sexo sem metáforas e complexos. Como a nova e infalível Mamãe da Putaria, uma colaboração com a veterana do funk carioca Tati Quebra Barraco, referência de início de percurso para MC Carol (“na época ela era a única mulher negra gorda do funk e isso me encorajou”). Ou como Propaganda Enganosa, citada em Mamãe da Putaria, sobre aqueles homens que prometem fazer maravilhas na cama, mas que depois na hora da verdade não dão uma para a caixa – um problema que deve afectar, assim de cabeça, uma em cada cinco mulheres em todo o mundo. “Acontece muito.”

“Eu gosto de colocar nas minhas letras coisas com que as pessoas se identifiquem, coisas que a gente vive no dia-a-dia, e o sexo a gente vive no dia-a-dia, é do quotidiano”

“Eu gosto de colocar nas minhas letras coisas com que as pessoas se identifiquem, coisas que a gente vive no dia-a-dia, e o sexo a gente vive no dia-a-dia, é do quotidiano”, aponta a cantora. “Eu era uma adolescente muito retraída, sabe? Eu não conversava com ninguém sobre sexo e poderiam ter-me acontecido inúmeras coisas. É muito importante essa liberdade de falar sobre sexo, do que se gosta no sexo. Se você não conversa, você não sabe das coisas.” Se para alguns isto não passa de grosseria, para outros é extremamente poderoso e libertador: uma questão de empoderamento sexual numa sociedade que ainda se acha no direito de supervisionar a sexualidade e os desejos das mulheres, sobretudo das mulheres negras, e num género musical que consegue ser tremendamente misógino e violento para mulheres e pessoas LGBT.

MC Carol tem o sexo na ponta da língua, mas não tentem reduzi-la a uma caricatura. Ouçamos Delação Premiada, do álbum Bandida (2016), perigosa como algum rap, perigosa como algum rock foi em tempos, e a sua voz com gravilha, a ferver de urgência, a denunciar a violência policial e estadual contra a população negra da favela. Ouçamos ainda, no mesmo disco, esse hino anticolonialista chamado Não Foi Cabral, em que a cantora contesta a tese de que foram os portugueses que “descobriram” o Brasil, falando no genocídio de indígenas e lembrando Zumbi dos Palmares e Dandara, símbolos da resistência negra contra a invasão colonial e a escravatura (Linn da Quebrada fez uma versão desta canção nos primeiros concertos que deu em Portugal).

Não Foi Cabral chegou a ser analisada por professores, o que não deixa de ser curioso, já que esta canção é uma espécie de resposta à professora de história com quem MC Carol tinha constantes discussões. “Eu batia muito de frente com ela por causa da história do Brasil. Eu achava que os livros não contavam tudo, não contavam o que tinha acontecido, e eu queria saber mais e mais”, explica ao Ípsilon. “Por isso havia atrito, e eu era expulsa da sala, ficava dias suspensa. Era considerada uma aluna rebelde.”

MC Carol continua a não pedir licença para dizer o que tem a dizer. E se uma mulher negra favelada que fala sobre sexo e assuntos politizados incomoda muita gente, uma mulher negra favelada com um corpo fora dos padrões de beleza incomoda muitos mais – basta ver o rol de comentários maldosos, misóginos, racistas e gordofóbicos de que é alvo nas redes sociais. “Eu já passei a fase de me importar. Essa fase de me importar com o que os outros falam foi na escola.” Para essas pessoas, fica a mensagem: “Eu estou pouco me lixando.”

O feminismo e Marielle

MC Carol é considerada uma das principais vozes feministas do funk brasileiro, a par de nomes como Linn da Quebrada – que volta a Portugal este domingo para uma conversa no Centro Cultural de Belém –, Karol Conka, Deize Tigrona e Tati Quebra Barraco, entre outras artistas menos conhecidas como MC Deyzerre, MC Xuxu ou o colectivo Baile em Chernobyl, de São Paulo, que dia 8 de Junho passa pelo Pérola Negra, no Porto, numa parceria com a festa Kebraku.

A cantora carioca costuma dizer que nasceu feminista “sem saber o que era o feminismo”, e que começou a cantar “músicas feministas sem saber que eram feministas”. Em criança, percebeu rapidamente que “alguma coisa estava errada no mundo” quando os rapazes não queriam jogar à bola com ela, quando não se sentia respeitada por ser mulher. “Eu não aceitava o lugar em que eles me colocavam, então eu saía na porrada”, revela. “Tive de me camuflar de homem, falar como um homem, pensar como um homem para ser respeitada por homens. O apelido Carol Bandida veio de criança porque eu resolvia todos os problemas com porrada.”

“Tive de me camuflar de homem, falar como um homem, pensar como um homem para ser respeitada por homens. O apelido Carol Bandida veio de criança porque eu resolvia todos os problemas com porrada.”

À medida que foi crescendo, foi colocando as coisas noutra perspectiva. Percebeu que o machismo “é uma questão histórica muito complexa”, e canalizou a sua revolta para a música: daí surgiram canções como 100% Feminista, com Karol Conka, onde faz referência à violência doméstica que testemunhou dentro da sua própria família. Jurou que nunca ia passar por uma situação semelhante, até que no ano passado foi vítima de tentativa de feminicídio pelo ex-companheiro, que não aceitou o fim da relação e entrou em casa da cantora com uma faca em punho. “A minha vida mudou, para sempre”, diz MC Carol, a partir de um país que tem uma das maiores taxas de feminicídio do mundo — só este ano, no Brasil, as contas já vão em mais de 200 casos de feminicídio, excluindo as tentativas. “Ainda tenho algumas paranóias. Quando o vento bate na porta, qualquer barulhinho; ainda tenho aquela sensação de que é ele que vai entrar e vai-me matar. Mas estou muito melhor agora.”

2018 foi um “ano pesado” para MC Carol. Nas últimas eleições do Brasil, candidatou-se, sem sucesso, a deputada estadual no Rio de Janeiro pelo PCdoB, o Partido Comunista. “Fui muito perseguida nessa época e muito atacada nas redes sociais.” Uns meses antes, teve de lidar com o assassínio da vereadora e activista Marielle Franco, que foi quem a motivou a entrar na política. “É uma coisa que a gente não supera, sabe? Não dá para superar uma morte tão cruel, tão covarde, de uma mulher negra que defendia as mulheres pretas na política”, afirma a cantora, ainda com a indignação a pesar-lhe na voz. “Eu fiquei com muito medo. Foi a fase da minha vida em que eu mais tive medo.” Poucos dias depois da morte de Marielle, MC Carol lançou uma canção em sua homenagem, que funciona também como um funk de protesto, um retrato do Brasil. As rimas, certeiras e pugilistas, são cuspidas com dor e ferocidade: “O povo preto tá sangrando todo dia/ Eu não aguento mais viver oprimida/ Nesse país sem democracia”.

 

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