A vez do morro

Xandra Stefanel

Jovens de comunidades combatem a exclusão simbólica dos mapas oficiais e digitais e se inserem na cartografia das cidades

“A Rocinha é considerada bairro desde 1993, só que quando você olha no Google não tem nenhuma rua registrada, só aquelas ruas da entrada. Não tem a Laboriaux, não tem a rua da Caxopa, ruas tradicionais que todo mundo conhece. A Rocinha é conhecida internacionalmente e não tem nada no Google?”, questiona o jovem jornalista comunitário Michel da Silva, morador desta que é uma das maiores e mais populosas favelas do Brasil, na zona sul do Rio de Janeiro.

A vez do morro
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Em tempos que as ferramentas de busca pela internet e os sistemas de posicionamento global (ou GPS, da sigla em inglês) fazem cada vez mais parte do cotidiano de milhares de pessoas, o fato de não “existir” no mapa reforça o sentimento de exclusão já bem conhecido das populações carentes. Das 6.329 favelas identificadas pelo Censo Demográfico – Aglomerados Subnormais de 2010, do IBGE, boa parte não consta nos mapas. Ou seja, apesar de serem povoadas, aparecem como vazios cartográficos.

A vez do morro
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É o que aborda o documentário Todo Mapa tem um Discurso, lançado no final de abril pelo Programa Rede Jovem. A organização, que existe desde 2000 e que usa a tecnologia para fins sociais, criou em 2009 o Wikimapa, um mapa virtual colaborativo voltado para o mapeamento de pontos de interesse e cartografias de ruas, becos e vielas de comunidades de baixa renda ainda excluídas das representações gráficas oficiais e digitais.

“Em 2006, nós começamos a trabalhar integrando internet com o celular porque percebemos que o celular era uma ferramenta que também fazia parte da inclusão digital e que tinha uma capilaridade de uso muito maior que o computador. Conversando com os jovens, começamos a perceber que as ferramentas de geolocalização, principalmente o Google Maps, na maioria das vezes não eram nem conhecidas por quem morava dentro das favelas”, afirma a antropóloga e diretora estratégica do Programa Rede Jovem, Patrícia Azevedo.

Segmentação

Naquela época, já era comum pesquisar endereços e trajetos em sistemas de geolocalização e a equipe do programa começou a questionar as razões que faziam com que os moradores de comunidades carentes não utilizassem este tipo de ferramenta. “A gente chegou à conclusão muito brevemente: a favela não estava representada dentro desses mapas. Eles eram mais um elemento de segmentação, que afastava a favela da cidade e criava outra barreira social para quem morava ali dentro. Nós vimos que todos os mapas que faziam alusão à favela eram mapas do tráfico, da milícia, da criminalidade… Eles destacavam sempre essas regiões a partir de algo negativo”, constata a antropóloga.

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m cinco anos, a tecnologia social criada pelo Rede Jovem incluiu 11 comunidades no Wikimapa, dez delas no Rio de Janeiro e em Capão Redondo, na zona sul da capital paulista. A primeira foi o Morro de Santa Marta, no bairro de Botafogo, onde mora e trabalha o guia turístico Paulinho Otaviano. “O fato de não estar no mapa, para mim, é uma sensação excludente, de que a gente não faz parte da cidade, do roteiro tradicional. É uma coisa que a gente sabe que não é verdade. As favelas estão inseridas neste contexto e existe uma interação. Quem não mora na favela hoje pode subir tranquilo e quem é da favela participa do dia a dia da cidade”, opina Otaviano no documentário.

O objetivo do Wikimapa é dar visibilidade aos potenciais locais e encurtar as distâncias entre a cidade e a favela, afinal, uma faz parte da outra. “Com relação à ausência dessas comunidades do mapa, a gente remete isso muito ao interesse econômico. Até pouco tempo atrás, não existia nenhum interesse econômico dentro dessas áreas, então não havia esforço para mapear essas regiões, o que vem mudando a partir do aumento do poder aquisitivo dos moradores de favela. Hoje, várias empresas querem entrar nas comunidades, querem ter suas lojas e uma representação nestes lugares. Então isso vem mudando desde 2009,” aponta Patrícia.

A vez do morro
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Além de toda a simbologia de fazer parte do mapa, também tem as questões práticas que podem ser conquistadas a partir da mobilização da sociedade. “É claro que precisa de muita articulação para efetivamente virar nome de rua e entrar nos mapas digitais… É algo muito maior do que o projeto Wikimapa pode alcançar. O documentário foi pensado no intuito de atravessar outras instituições que também têm um trabalho de mapeamento, pesquisadores e profissionais que pensam o território, a relação do espaço com a cidade e os direitos que estar no mapa pode trazer para aqueles moradores. O filme amplia a possibilidade de debate sobre o assunto porque nossa ideia é fazer exibições, promover encontros e discussões mais profundas”, afirma Thaís Inácio, que é uma das diretoras de Todo Mapa tem um Discurso, ao lado de Francine Albernaz. Depois de completado o circuito de exibição e debate, o documentário poderá ser assistido pela internet.

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Livre e colaborativo
O uso do prefixo wiki não é por acaso. O termo faz alusão ao uso de software ou aplicativo que permite a criação e edição de documentos na web de forma livre e colaborativa. “A questão wiki está na veia do projeto. A ideia é ser colaborativo, garantir que todo mundo produza conteúdo, insira conteúdo e que isso não passe por uma moderação”, explica a geógrafa e diretora executiva do Programa Rede Jovem, Natalia Aisengart.

Segundo Patrícia Azevedo, o wiki-repórter é selecionado dentro da favela onde mora. “Selecionamos jovens que são articulados, comunicativos, que conhecem bem a comunidade e já têm alguma experiência com trabalhos sociais. Fazemos uma capacitação para que eles não só façam o mapeamento, mas principalmente que multipliquem esse conhecimento, que apresentem o Wikimapa para que outras pessoas também o façam. O wiki-repórter é um multiplicador, mas o sistema é aberto a qualquer pessoa e em qualquer lugar do mundo.”

Os jovens fazem o treinamento e passam seis meses incluindo no mapa ruas, becos, vielas e estabelecimentos que acham significativos dentro de suas comunidades. “A principal mudança que nós vemos com os jovens que trabalham com a gente é a questão da valorização local e a autoestima deles com relação a onde moram. Eles passam a conhecer melhor as comunidades, abordam comerciantes, têm o mapeamento de ruas, procuram saber por que aquela rua recebeu aquele nome. Eles conhecem a história da sua própria comunidade e acabam se deparando com valores históricos e memórias que até então eles não tinham. A identidade, o pertencimento e a autoestima mudam”, garante Patrícia.

Enfim, os jovens percebem que os mapeamentos não são dotados de neutralidade e objetividade. Fica evidente que, quando se inserem no mapa da cidade, o discurso cartográfico (e o sentimento) passa a ser de inclusão.

Fonte: Rede Brasil Atual

 

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