Morte materna é a mais cruel expressão do racismo no Brasil

Engravidar e parir tem sido prática de risco, e óbitos aumentam durante pandemia de Covid-19

O fim do mês de maio é central na agenda de movimentos feministas e de mulheres negras em todo o mundo. O Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher, em 27 de maio, e o Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna, em 28 de maio, levam-nos a perguntar: por que seguimos aceitando a morte de pessoas negras que gestam? Até quando testemunharemos essa brutal expressão do racismo no Brasil, considerando que a mortalidade materna é, em quase sua totalidade, evitável?

A mortalidade materna, especialmente de mulheres negras, é histórica e faz parte de um conjunto de práticas racistas institucionalizadas no sistema de saúde brasileiro. Mesmo com políticas voltadas para a saúde materna, o Brasil não alcançou o patamar mínimo apontado pela OMS (Organização Mundial de Saúde), que é de 20 mortes por 100 mil nascidos vivos.

No contexto da pandemia de Covid-19, a taxa de mortalidade materna no país saltou de 57,9 (2019) para 107,5 (2021) a cada 100 mil nascidos vivos, sendo 61,3% de mulheres negras (Ministério da Saúde). Assim regredimos a índices similares aos dos anos de 1990, num quadro de total violação do direito à saúde sexual e reprodutiva. O horror também se repete localmente. No estado do Rio de Janeiro, a taxa mais que dobrou, saltando de 73,5 em 2019, antes da Covid-19, para 155 a cada 100 mil nascidos vivos em 2021, de acordo com os dados do SIM (Sistema de Informações de Mortalidade).

A experiência de engravidar e parir tem sido uma prática de risco para adolescentes, mulheres e pessoas negras que gestam. Elas são discriminadas, humilhadas, mal orientadas e não recebem informações de qualidade para viver essa fase da vida com dignidade. As principais causas desse tipo de óbito são hipertensão (pré-eclâmpsia e eclâmpsia), hemorragias graves, infecções, complicações no parto e abortos inseguros. E podem ocorrer antes, durante e depois do parto.

Segundo dados coletados pelo dossiê Mulheres Negras e Justiça Reprodutiva, de Criola, no município do Rio de Janeiro cerca de 73% das mulheres pretas acessam o pré-natal, enquanto, entre mulheres brancas, esse número sobe para 84,2% (SMS/RJ, 2020). Na Região Metropolitana esse percentual se apresenta de forma muito desigual: na cidade do Rio de Janeiro, o índice de pré-natal insuficiente, quando há menos de sete consultas, é de 18%. Entretanto, em cidades como Belford Roxo e Duque de Caxias, quase metade das mulheres não tiveram pré-natal adequado: 45,6% e 43,2% respectivamente.

A violência obstétrica, que muitas vezes antecede a mortalidade de gestantes e puérperas, é especialmente cruel entre homens trans e mulheres em situação de cárcere. São inúmeras as denúncias de pessoas negras que têm precário atendimento e assistência médica durante a gestação ou na hora do parto, sendo expostas a violações extremas, como uso de algemas ou separação por dias de seus recém-nascidos. O que é pior: na maioria dos casos essas pessoas sequer deveriam estar presas.

A Lei 13.769, de 2018, originada do Habeas Corpus coletivo 143.641 e das Regras de Bangkok, prevê que pessoas gestantes, lactantes, puérperas ou responsáveis por crianças até 12 anos possam responder por suas acusações fora da prisão até o julgamento nos casos de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça. Nem mesmo instrumentos como o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Marco da Primeira Infância ou a nota técnica do Ministério da Justiça nº 17/2020, que reforçam esse entendimento, são cumpridas, como alerta a organização Criola na campanha “A Dignidade não é provisória”.

Nossa resistência e denúncias, portanto, precisam seguir à altura dos ataques aos nossos direitos e às nossas vidas. O racismo está no centro da perpetuação, aumento de risco e piora dos índices de saúde sexual e reprodutiva para pessoas negras, assim como no centro de todas as outras formas de injustiças sociais e raciais, violências e morte da população negra que vedam a realização da saúde integral. Por isso, o enfrentamento à mortalidade materna, a luta pela implementação da Política Nacional de Saúde Integral para a População Negra, a defesa do SUS para todes e o repúdio à lei do teto de gastos devem ser bandeiras de todes que buscam defender a democracia, erradicar o racismo e almejam justiça reprodutiva e bem-viver.


Lúcia Xavier

é coordenadora geral de Criola

Lia Manso

Coordenadora de projetos em Criola, advogada, pesquisadora e ativista em direitos humanos, raça e gênero

PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento

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