Sobre o tsunami da intolerância

por  no Brasil Post

Querida pequenina,

Tento te escrever há mais de mês e não consigo.

O clima está estranho, meu bichinho. Sinceramente, acho que é o pior momento político que o papai já viveu.

Espero que quando você ler isso aqui pense, “Nossa, papai era muito paranoico.” E o mundo não corresponda em nada ao que descrevo aqui.

Existe uma onda de intolerância e burrice cada vez maior e, como um tsunami, ela vai varrendo o bom senso, destroçando o amor, e machucando muito a todos. E eu temo pelo que restará depois. O que vai sobrar para você e seus amiguinhos.

Não se trata de discordâncias políticas, minha anarquistinha. Isso é saudável em qualquer democracia. Tem um ditado que diz, quando dois sujeitos entram em uma discussão, quem perde a argumentação é quem de fato sai ganhando, pois aprende algo novo. Isso é bem verdade, meu grilinho falante. Sempre que estamos conversando, discutindo pontos de vista diferentes, temos que ter em mente a possibilidade de estarmos errados. E olha que legal se aprendermos isso, não é?

Infelizmente, defendemos opinião como time de futebol, algo imutável. Aí, o nível desce tremendamente. Vejo pessoas gritarem, com muito ódio, frases vazias de qualquer sentido, “Quem defende bandido é bandido.” “Bandido bom é bandido morto”. Isso, além de não contribuir em nada e demonstrar completa ignorância sobre qualquer assunto, fomenta ódio e aumenta a tal onda que me refiro.

Por exemplo, li alguns comentários de internet (o que não recomendo, viu, abelhinha?) E os “comments” seguiam, mais ou menos, esse script:

Fulano argumentava X.

E X poderia ser algo favorável ao ECA, ou à união homoafetiva, ou uma defesa a tolerância religiosa e o Estado laico. X poderia ser também um posicionamento contrário ao machismo, ou ao racismo, enfim, qualquer postura repleta de bom senso e tida como progressista.

Invariavelmente, o contra argumento seguia a linha: “Mas e o Foro de São Paulo, seu petralha??!!

Tá com dó? Leva pra casa! Gayzysta!!! Feminazi!! E o mensalão?? E se estuprarem toda sua família, filhote de Jean Wyllys?!?!?!” Tudo isso com muito caps lock e pouca coerência.

Eu não conseguia entender a linha de raciocínio absurda. Parecia outra língua.

E esse radicalismo nervoso está acontecendo em diversas esferas. Teve jornalista que fez uma crônica sobre a morte de um cantor e além de enfrentar um cyberbullying cruel, está sendo processado. Teve humorista que entrevistou a presidenta e foi ameaçado de morte por aparentemente não ter perguntando algo sobre “a utilização de urnas venezuelanas bolivarianas” durante a eleição (?!). Agora mesmo, enquanto te escrevo, uma atriz famosa desabafou em sua rede social a respeito de alguma treta no aeroporto e já querem fazer dela a cara da “direita alienada”. Até o titio Matheus, que amamos, foi achincalhado por conta de um texto em que alertava sobre os perigos dessa onda e defendia o amor. E defender o amor tem sido algo extremamente ofensivo para alguns. Na real, a onda não perdoa nada, nem ninguém. Quem se expõem emitindo opinião parece caminhar em um campo minado. E isso é o pior que pode acontecer. Quer dizer, não é o pior que pode acontecer, mas garanto que nos piores momentos de nossa história, emitir opinião era assim, como pisar em ovos.

Não conseguia entender. Até que um amiguinho do papai mostrou essa pesquisa que afirma que 38 por cento dos universitários brasileiros são analfabetos funcionais. Não conseguem interpretar um texto. (Sim, leitorinha, aqueles que devemos recorrer em caso de dúvida, os universitários, não sabem ler.)
Bem, as coisas começaram a fazer mais sentido.

Outro dia, te escrevi o que julgava ser um texto amoroso. E a onda também não me poupou. Ao ler tantas ofensas e até ameaças, ingenuamente alterei o texto, com medo de ter dado margem a interpretações tão mesquinhas. Hoje, sei que eles simplesmente não souberam ler o texto. E por mais que eu explicasse, não adiantava. Mais ou menos quando você não entende como eu sumo ao colocar as mãos sobre meu rosto e reapareço magicamente gritando “Achou!”. Um dia você vai entender que eu me escondi e não sumi. Mas hoje, isso é indecifrável para você. Assim como para alguns, ter uma opinião diferente te torna inimigo.

Inventaram uma dicotomia entre petralha x coxinha, um binarismo reducionista absurdo. Inventaram expressões como “gayzista” ou “feminazi” que simplesmente não existem. São inverdades burras e, de uma maneira ou de outra, endossam o preconceito. Olha, moranguinho, temos que ter lado, sim. Mas não existem só dois lados. Têm um zilhão de lados e pontos de vista. Não dá pra dividir em dois grupos.

Eu tô te falando de “bobagens” de internet, mas que reverberam a valer no mundo real. Li que no Brasil acontece um linchamento (ou tentativa) por dia. Mas isso, desculpe-me, pacifistinha, não vou te explicar o que é. Ainda não. Nem conseguiria, inclusive.

Claro que o sujeito que tá latindo burrice na internet não é automaticamente um linchador. Assim como um sujeito que dá uma “cantada'” desrespeitosa numa mina não é um estuprador. Ainda não. Mas o caminho que seguem, tem esse destino final. São muitos passos do “fiu fiu” até o estupro, ou do “hater” até o linchamento, mas a trajetória é a mesma.

Daí minha preocupação com tanta intolerância nas redes. De pequenas marolas, o tsunami da intolerância é formado.

E eu aqui, apavorado, quase paralisado, não consigo nem te escrever essa carta. Não consigo, pois não sei qual a melhor maneira de agir. Escrevo prolixamente tentando descobrir…

Sua chegada mudou tudo para mim, amorinha. Quer dizer, sempre achei fundamental a luta por um mundo melhor. E sempre doeu a injustiça e desigualdade. Mas agora, pessoinha, a parada é mais sinistra. Além do senso óbvio de responsabilidade contigo – de não permitir que se afogue nesse tsunami – me vejo com a tarefa de impedir a própria existência do tsunami. Não precisa ser muito esperta pra sacar a megalomania delirante de achar que devo mudar o mundo pra você. É ingênuo e egocêntrico, mas tem tirado meu sono.

É foda, muitas vezes dá vontade de se fechar na bolha. Chamar os amiguinhos, todo o pessoal coloridão da timeline do Facebook, comprar uma ilha grega (deve estar uma pechincha, eita globarbarização!) e desencanar desse mundo que “deu ruim”. Vambora ficar só a turma do amor e viver numa boa. Deixar todos os coxinhas e petralhas para trás. “Enquanto eles se batem, dê um rolê.” Mas, até você, um bebê, sabe que não funciona assim, né?

Não existe essa de nos fecharmos. Isso é justamente o contrário de defender a diversidade que enaltecemos e acreditamos. Na vida real, não tem essa de bloquear alguém. O diálogo entre diferentes é necessário e lindo, afinal, “somos todos irmãos braços dados ou não”. E o mundo vai muito além de nós.

E bem, não consigo impedir o tsunami, infelizmente. Mas posso e devo te ensinar a nadar. E assim que você perder o medo de colocar a cabeça de baixo d’agua vai perceber que dá pra nadar um montão, pegar jacarés, passar a arrebentação e até surfar.

Para conseguir nadar nessa tempestade aconselho uma tática, a empatia sempre. Precisamos sempre nos colocar no lugar do outro. Olhar através da perspectiva de quem machuca e de quem é machucado.

Seja a vítima de algum crime. Seja quem cometeu o crime. Sejam minorias agredidas, ou os preconceituosos agressores. Temos que nos esforçar para entender o que movem ações tão brutais e erradas. Entender não significa endossar, pelo contrário. Por exemplo, ser contra a redução da maioridade penal é justamente lutar para diminuir a violência praticada por e contra os jovens.

Não se trata de ser “bonzinho” e sim , exercendo a empatia, buscarmos as melhores maneiras de erradicar ao máximo o ciclo da violência e construir uma sociedade mais justa. É nisso que acreditamos.

Isso também vale para os cães raivosos da internet. Olhar para esse outro, despi-lo de todo seu ódio e sacar o que o motiva. É difícil pra caramba porque eles capricham na agressividade, mas nós não somos assim. É importante perceber que atrás de um comentário imbecil existe todo um repertório pobre de reflexão e rico em intolerância, machismo, racismo, opressão e medo. Existe um aparato midiático, políticos corruptos, oportunistas travestidos de “religiosos”, e uma série de interesses nojentos endossando e incentivando esse tipo de comportamento.
Mas, além disso, por trás do comentário, existe também outro ser humano que acredita estar defendendo o melhor. Perceber o outro pode até ser difícil, mas, acredito, mais construtivo.

O amor é nossa onda e a maneira que escolhemos lutar. Sacou, surfistinha? Da empatia, força, reflexão, calma e amor, do diálogo entre opiniões conflitantes e do respeito, uma nova onda colorida e amorosa nascerá.

Com amor, tolerância e empatia sempre,
Papai.

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