O “Africano” segundo o “Pânico na TV”

Ter a dignidade humana respeitada também é um direito dos negros, índios mulheres, LGBTs, e todos que são cotidianamente humilhados neste submundo televisivo. Por lei, programas desse tipo nem deveriam ir ao ar. Temos o direito de tê-los fora do ar

Por Gabriel Rocha* no Brasil de Fato via Guest Post para o Portal Geledés

Se fizéssemos uma montanha com todo o lixo midiático consumido diariamente por brasileiros, ao lado dela o Monte Everest pareceria um cupinzeiro. Nela estariam os telejornais – extensões dos partidos políticos de direita -, os jornalecos policiais sensacionalistas, telenovelas, os programas domingueiros que pararam no tempo.

Mereceriam destaque também os programas de baixo nível que erroneamente recebem o qualificativo de “humor”. ‘Pânico na TV’, ‘Zorra Total’, ‘The Noite’, são apenas alguns deles, que, em geral, junto com seus seguidores e apoiadores, estranhamente se orgulham de ser “politicamente incorretos”.

Essa expressão é usada como se houvesse algo de excepcional nisso, como se vivêssemos em uma realidade de fato “politicamente correta”: sem racismo, sem machismo, sem homofobia, sem classes sociais, preconceitos contra obesos e na qual pessoas portadoras de necessidades especiais têm todas as suas demandas atendidas, nos espaços públicos e privados.

O ‘Pânico na TV’ é bem conhecido pelo festival de mulheres malhadas e siliconadas de biquínis que, quando não são humilhadas pelas “brincadeiras” dos “machos” apresentadores, são mantidas caladas, se restringindo a balançar o corpo em um lugar especialmente reservado à elas: decorar o cenário do programa pensado para uma plateia de “Homer Simpsons do Terceiro Mundo”.

Como seu congênere da Rede Globo, ‘Zorra Total’, os quadros privilegiam ataques a quem já é cotidianamente e historicamente atacado no Brasil: negros, índios, mulheres, LGBTs, nordestinos, pobres e gordos. Não há novidade nenhuma aí, apenas a reafirmação do que já existe. Apenas um elogio ao nosso atraso e à nossa miséria humana.

A velha novidade do Pânico na TV é a personagem que eles chamam de “Africano”, interpretado pela figura de talento e inteligência modestas Eduardo Sterblitch (vale a pena conferir sua entrevista com o saudoso Abujamra no Provocações).

Com direito à “blackface”, trata-se de uma personagem animalizada, pois não fala e apenas emite grunhidos; e todo o seu comportamento se encaixa perfeitamente no estereótipo do “primata” que os colonialistas europeus do final do século XVIII e início do século XX atribuíam aos africanos.

O nome genérico dado à personagem, “Africano”, supõe que a África seja um país (ou uma coisa só, na cabeça deles), e não um continente com 55 países, com uma pluralidade cultural e histórica e com um legado imenso para a humanidade; que vai muito além do contingente de negros escravizados trazidos para as Américas ou levados para regiões do Oriente.

A África pintada por esses “gênios” se restringe aos estereótipos deixados pelo colonialismo. Provavelmente, na cabeça desses seres a África não passa de um lugar onde tem negros, savanas, florestas tropicais, epidemias, guerras e um povo faminto. O racismo do ‘Pânico na TV’ também se vale do preconceito religioso ao atribuir à personagem grotesca “danças esquisitas” e dizer que ela “recebe uma entidade”.

Com muito custo, depois de mais de um século de abolição e de luta, hoje temos uma lei que criminaliza o racismo (a Lei 7.716, sancionada em 1989). Porém, ainda vemos um Danilo Gentili oferecer bananas, insinuando que um internauta negro é um macaco, e ser inocentado por um juiz igualmente racista. Vemos em um quadro qualquer do ‘Zorra Total’ negros e nordestinos aparecem sempre como figuras grotescas, desdentadas e burras. Vemos descaradamente surgir personagens como esta do Pânico. Vemos o racismo veiculado como algo normal e, pior, como algo divertido, como humor, em concessões públicas que são os canais de TV. Pior ainda, toda essa baixaria tem audiência.

O que adianta termos leis que criminalizam o racismo, quando figuras públicas que cometem racismo saem impunes de julgamentos e têm espaço e audiência em emissoras de TV?

É triste o quadro, pois a audiência de programas como esse – misóginos e racistas -, de certa forma reflete o nosso nível de consciência (ou a falta dela) sobre coisas que dizem respeito a nós mesmos, a todos nós.

Porque o machismo não é um problema da mulher, assim como o racismo não é um problema do negro e a questão de classe não é um problema do pobre: a superação da condição de opressor e oprimido envolve as duas pontas, portanto não é um problema só de um lado.

O oprimido deve ser o protagonista de sua libertação e só se libertará através da luta, já que o opressor dificilmente abrirá mão de seus privilégios voluntariamente. Mas a luta envolve os dois lados e, na minha concepção humanista, não implica na eliminação física do opressor (embora este muitas vezes deseje e elimine fisicamente o oprimido).

Uma sociedade sem classes não é impossível, o que é impossível é uma sociedade só de negros, só de brancos, só de homens, só de mulheres, a não ser através de um genocídio em máxima escala, ou de um apartheid (tem gente que até gostaria que isso acontecesse, mas não passarão!).

Não há outra saída, temos que viver juntos e para vivermos juntos temos que ter os mesmos direitos, enquanto isso não acontecer, não haverá paz, e a falta de paz atinge a todos. Ter a dignidade humana respeitada também é um direito dos negros, índios mulheres, LGBTs, e todos que são cotidianamente humilhados neste submundo televisivo. Por lei, programas desse tipo nem deveriam ir ao ar. Temos o direito de tê-los fora do ar.

*Gabriel dos Santos Rocha é graduado em história, mestrando em história social pela Universidade de São Paulo e bolsista FAPESP.

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