Pela refundação do Estado brasileiro – Por: Dennis de Oliveira

O sentimento expresso pela população com o conjunto das manifestações nas últimas semanas é produto do desmonte do aparelho de Estado. Ele não se iniciou agora, mas foi aprofundado principalmente durante a vigência do ideário neoliberal nos anos 1990. Naquele momento, disseminava-se a idéia de que um bom governante é aquele que tinha “responsabilidade fiscal”, isto é. que adequasse os gastos com as receitas obtidas. Por isto, a chamada Lei da Responsabilidade Fiscal ficou conhecida como uma norma que iria moralizar e modernizar a gestão pública. Moralizar porque iria impedir que os governantes usassem mal o dinheiro público, seja pelo superfaturamento ou pela corrupção.

Omite, esta discussão, que o que sangra os cofres públicos não é a corrupção ou o superfaturamento (embora, ressalto, estas práticas imorais devam ser combatidas) mas sim o pagamento de juros e serviços da dívida. Segundo dados oficiais, 42% do Orçamento federal deste ano está comprometido com o pagamento de juros e serviços da dívida pública. Isto significa 900 bilhões de reais, maior que qualquer orçamento em área social, seja para manter as universidades públicas, o Bolsa Família, a saúde, etc. É dinheiro público que engorda os cofres dos rentistas, dos especuladores com títulos públicos. A grande maioria dos economistas que fazem suas “análises” na mídia hegemônica são consultores destas empresas que vivem da especulação, por isto omitem esta informação e focam que o problema do país é a gestão pública.

O governo Dilma iniciou, no ano passado, um movimento de corte de juros da taxa Selic que indexa a dívida pública. A mídia hegemônica e seus “economistas” começaram a gritaria. Intensificaram as críticas. O objetivo do governo Dilma, porém, não era apenas reduzir o impacto da dívida no Orçamento, mas também reduzir a taxa de juros cobradas no mercado para induzir ao desenvolvimento industrial. Apostou em uma contradição interna das classes dominantes entre o capital rentista e o capital industrial e produtivo. Porém, a tentativa de administrar este conflito das classes dominantes esbarrou em alguns pontos:

a-) A estrutura produtiva industrial brasileira está montada em um modelo monopolizado, voltado em boa parte para atender demandas externas e de uma classe privilegiada. Embora há um mercado em expansão, não está montada para atender um mercado consumidor de massas. Por isto, prefere maximizar os lucros pelo aumento dos preços (o que gera inflação) e atender apenas parte deste mercado em crescimento. O monopólio existente em vários setores impede que as regras da concorrência controlem os preços.

b-) A disseminação forte de uma ideologia do consumismo por parte deste modelo transforma a luta social de “luta de classes” em uma “aspiração global para ser classe média” como afirma o pensador Goran Therborn (no texto “Classes sociais no século XXI” publicado na revista New Left Review – clique aqui para ler). A disseminação do consumismo e a impossibilidade de realizá-lo plenamente leva a estas explosões de revolta aparentemente sem foco, mas direcionadas a tudo o que é vinculado às instituições que tradicionalmente representam o espaço político, como partidos, organizações sociais e mesmo a mídia.

Este desenvolvimento buscado ocorre sem uma profunda reformulação no aparelho institucional de Estado. Ele foi praticamente dizimado com o ideário neoliberal nos anos 1990, houve uma tentativa de recuperação do mesmo a partir do governo Lula – como exemplo, cito a expansão do ensino superior público em tendência inversa à forte privatização ocorrida nos anos 1990. Porém, parte da demanda por ensino superior foi atendida pelo atual governo por meio do ProUni, programa de bolsas que acabou por fortalecer o ensino superior privado. O aumento da inserção de afrodescendentes no ensino superior ocorreu por meio do ensino superior privado, conforme demonstrei em coluna publicada na edição impressa da revista Fórum em abril deste ano. Houve, assim, um deslocamento da idéia de cidadania garantida por meio de direitos públicos para a construção de condições de todos serem consumidores. Não é a toa que os governistas de plantão – e a própria mídia – chamam a expansão da classe trabalhadora de “nova classe média”.

Olhando as pesquisas feitas pelo Data Folha e Ibope se constata que os problemas mais citados são saúde e educação. Além disso, que a esmagadora maioria não se sente representada pelos partidos políticos e pelos poderes constituídos. A mídia hegemônica faz a leitura ideológica de que isto se trata de uma insatisfação “geral” contra o governo, apesar dos índices de popularidade de Haddad e Alckmin terem aumentado após os mesmos anunciarem a redução das tarifas e os de Dilma permanecerem inalterados (segundo dados parciais da própria pesquisa do Data Folha – ainda não entendi porque não foi publicada a íntegra da pesquisa). E a mídia diz que esta insatisfação é por conta da “corrupção” e dos “gastos com a Copa do Mundo”, contrariamente ao que indica os resultados da pesquisa do Ibope que apontam 24% e 5% respectivamente para estes motivos., bem abaixo de saúde, educação e o preço dos transportes públicos. Os dados mostram também que a maioria criticou a ação da Polícia Militar nas manifestações.

Saúde, educação, transporte público, policiamento, crítica ao sistema representativo, manipulação da mídia hegemônica… O que estes itens apontam? Para a necessidade de uma reformulação radical das instituições tanto no seu formato representativo e na definição das suas prioridades e funções. É isto que chamamos de uma ação pela refundação do Estado brasileiro que garanta uma democracia de cidadãos e não de consumidores e que recupere o poder normatizador e regulador público. Democracia não se faz negociando com os que sempre detiveram o poder no país: grande capital industrial e rentista, monopólios da mídia, instituições voltadas para a manutenção de privilégios.

Por: Dennis de Oliveira

Fonte: Quilombo

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