A Argentina também tem representantes afro-políticas

Mais de 60 mulheres afrodescendentes, a maioria da Argentina, mas também do Caribe e da América Latina, reuniram-se em Buenos Aires para participar de um workshop de treinamento político com foco em estratégias de defesa de direitos, liderança coletiva e formação de alianças. Durante três dias de trabalho intenso, elas criaram redes e propostas para ocupar espaços públicos com uma agenda antirracista e transformadora.

“Muitas de nós transformamos nossa identidade em uma bandeira. Se dizemos ‘sou mulher’, ‘sou afrodescendente’, ‘sou migrante’, é porque essas identidades têm sido objeto de discriminação”, disse Epsy Campbell, ex-presidente da Costa Rica, para um auditório de mulheres ativistas e lideranças políticas, em sua maioria afro-argentinas, reunidas no salão de um hotel do centro da cidade de Buenos Aires. Todas unidas em uma construção coletiva. “Acreditamos em um poder que cuida, que transforma e que se constrói em um coletivo que é chamado de tribo, que é estar lá para os outros, especialmente quando eles mais precisam, independentemente de onde nascemos”, reafirmou Campbell, atual presidente da organização AfroPolíticas. A ideia do coletivo passou por 72 horas de trabalho em grupo em uma atmosfera de troca e concentração de mais de 60 mulheres das províncias de San Luis, Santiago del Estero, Córdoba, Misiones, Entre Ríos, Buenos Aires e também do Uruguai, Costa Rica, Porto Rico e Brasil neste evento organizado pelo Centro de Mulheres Afro e pela Coalizão Global Contra o Racismo. 

Sala de reuniões – Foto enviada para o Portal Geledés

O compromisso coletivo foi selado desde o minuto zero. Na tarde de 9 de maio, a brasileira Marisa Nascimento abriu o dia com bênçãos numa dança ancestral que encheram o espaço do grande salão com calma e força. Em seguida, as palavras foram: “Este evento é sobre união porque é uma declaração política. É um ato de resistência em que nós, mulheres negras e afrodescendentes e a diversidade, seguiremos em frente com orgulho”, disse Maga Perez, da Associação Misibamba e do Comitê Organizador do evento. O foco era claro: construir uma liderança transformadora e alianças estratégicas para influenciar as agendas públicas, especialmente em uma Argentina marcada por retrocessos nos direitos humanos. Diante desse cenário, todas as mulheres afrodescendentes lideranças, políticas e ativistas MLBTTNBI+ estavam fortes e organizadas.

“Nossos antepassados também formaram sindicatos para se organizar e resistir, para fazer valer seus direitos”, disse Tamara Barbará, da Comissão de Afrodescendentes do Sindicato dos Funcionários Legislativos da Argentina e membro do comitê organizador desse evento. “Somos o motor que impulsiona nossa economia. Precisamos de espaços de trabalho livres de racismo e discriminação”, enfatizou. A força de suas palavras reverberou e a atmosfera foi revestida de uma forte sensibilidade. Os aplausos ressoaram novamente quando Tamara mencionou mulheres afrodescendentes na Argentina que fizeram história, entre elas, María Remedios del Valle, capitã do pátria argentina, que lutou na guerra da independência. Em sua homenagem, o Dia Nacional dos Afro-Argentinas e Afro Argentinos e da Afro-Cultura é comemorado todo dia 8 de novembro.

Para explicar a complexidade das desigualdades no acesso das mulheres negras, Ana Irma Rivera, ex-senadora porto-riquenha e atual coordenadora do Movimiento Victoria Ciudadana, propôs uma imagem poderosa: a da teia de aranha. Ao contrário daqueles que pensam nas interseções como linhas que nos atravessam, ela argumentam que elas são caminhos pelos quais caminhamos como aranhas. “O problema é que muitas vezes vivemos essa teia como se fôssemos moscas presas, em vez de nos reconhecermos como as aranhas que a tecem e avançam sobre ela. Convido vocês a se reapropriarem dessa teia – nossa casa – e a pararem de vê-la como uma armadilha, transformando-a em uma plataforma a partir da qual podemos desafiar as exclusões e apoiar unas às outras”, concluiu.

Ana Irma Rivera (à direita), ex-senadora porto-riquenha e atual coordenadora do Movimiento Victoria Ciudadana Foto enviada para o Portal Geledés

A teia de aranha começou a se entrelaçar firmemente nas mesas de trabalho no grande salão desse workshop-reunião feminista e antirracista. As participantes realizaram exercícios de simulação sobre negociações estratégicas e alianças com base na prática de papéis em que representavam diferentes atores sociopolíticos. Foi dada atenção especial à organização de cinco mesas redondas com os seguintes pontos de trabalho: 1) o caso argentino, negação do componente na identidade nacional; 2) defesa de políticas públicas com base nas experiências bem-sucedidas de mulheres negras; 3) racismo institucional, interseccionalidade e disputas de poder; 4) juventude afro e liderança intergeracional; 5) agenda futura e pacto político antirracista. 

Mas o exercício inaugural, liderado por Epsy, começou com uma instrução individual: cada uma tinha que pensar em uma missão e visão de vida e, em um segundo momento, em grupos de trabalho, todas pensaram nisso juntas, em um “para onde estamos indo” que, daquele momento até o final da conferência, foi coletivo. Muito rapidamente, os conceitos foram entrelaçados em pontos precisos: como teias fortes e sólidas nas quais todas as participantes trabalharam em uma troca sensata e expuseram desafios e pontos fortes. 

Epsy Campbell, ex-presidente da Costa Rica – Foto enviada para o Portal Geledés

Diante de uma platéia atenta, Campbell observou que estamos passando por uma profunda transição geracional, com avanços e retrocessos aparentes, mas também com transformações que, embora parecessem impossíveis antes, agora é uma realidade. Ela lembrou que em seu país, a Costa Rica, há 15 anos, o casamento igualitário era impensável. “Dizia-se que a sociedade não estava preparada. No entanto, as condições estavam lá, e isso se tornou lei. Hoje isso não é mais um problema. As pessoas se casam, se divorciam, vivem suas vidas. E é exatamente isso que é importante: quando a lei se torna normalidade”, disse ele. As mudanças podem ocorrer rapidamente, advertiu, mas “os conservadores nos fazem acreditar que tudo tem que esperar”. Por isso, concluiu, que o contexto atual e com todas as suas tensões, “faz parte de um trabalho de parto. E como todo parto, ele dói”.

A experiência brasileira foi representada pela deputada federal Carol Dartora, do PT, que esteve presente e acrescentou muitos elementos à discussão. Um dos principais foi a riqueza da amerifricanidade de Lélia González para abordar o trabalho na região. “Ela abriu essa perspectiva para todos nós”, disse. Dartora compartilhou sua experiência como professora, atuante na educação étnico-racial, seu tempo nos sindicatos, no partido PT e a violência racista que sempre enfrentou. Por outro lado, Danielle Santana, coordenadora do GT Afro do Núcleo do PT na Argentina, compartilhou as perspectivas para a próxima Marcha das Mulheres Negras em Brasília, no dia 25 de novembro, na qual as mulheres afro-argentinas, latino-americanas e caribenhas expressaram seu compromisso. No entanto, há sinais de esperança. Cada vez mais pessoas estão se engajando em causas que não as afetam diretamente. “Quando alguém luta pelos direitos dos outros, e não pelos seus próprios direitos, já demos um grande passo”, disse Campbell. Esse é o cerne da liderança compassiva: reconhecer que o que queremos para nós mesmos, os outros também merecem. “Tão simples e tão profundamente revolucionário”.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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