A barata faz 100 anos

Uma das venturas – não são muitas – de envelhecer é a capacidade de reconhecer e agradecer o que muitas pessoas fizeram por nós. Júlio, meu avô postiço, judeu fugido da barbárie nazista, deu com o destino no Rio de Janeiro. Sua vida se tornou um esforço de adaptação à língua, à cultura, ao calor diabólico. Ao constatar que eu adorava ler me apresentou seu compatriota Franz Kafka (1883-1924), puxando da estante um volume fininho com título A Metamorfose. Disse com jeito seco, ele era um homem seco, Você tem que ler esta história.

Por  Fernanda Pompeu, do Yahoo 

Eu tinha doze anos e na minha casa não havia livros com carimbo infanto-juvenil. Havia livros comprados pelos adultos e saboreados por quem quisesse. Assim abri A Metamorfose e dei de cara com a história do caixeiro-viajante Gregor Samsa que acorda transformado em inseto repugnante. Em nenhum momento Kafka define o inseto. Mas para mim tratava-se de uma barata, espécie comum em nossa casa de frente ao degradado rio Maracanã.

Pronto. Um homem que desperta na forma de um inseto, mas segue pensando e sentindo como humano. A família dele chocada e inflexível não sabe o que fazer, salvo rejeitá-lo. Até uma hora em que uma maçã atinge suas costas. Vem uma baita inflamação e a consequente morte. Fiquei eletrizada e experimentei compaixão por aquela barata. Verdade que não se estendeu às baratas tijucanas, que segui esmagando num misto de asco e prazer.

Mais tarde ao ser relida a narrativa ganhou novos e densos significados. Na primeira leitura, eu ainda não sabia direito o que queriam dizer condição humana, alienação, discriminação, rechaço. Hoje já experimentei na alma um pouco de tudo isso. Mas o grande lance é que a cada leitura do livro, apresentado pelo avô, sinto coisas diferentes e intensas.

A força da história de um homem transformado em inseto talvez seja a razão da publicação comemorar cem anos de sucesso. Repare que na época atual, em que bens culturais às vezes duram semanas ou dias, a permanência é um feito! Kafka escreveu o livro em menos de um mês. De tão bem redigido, sincero, simples e complexo, acho que os bebês de agora seguirão no futuro lendo A Metamorfose.

+ sobre o tema

Salve Zumbi e João Cândido, o mestre sala dos mares

Por Olívia Santana   Há 15 anos, após uma grande marcha...

Olimpíadas de Tóquio devem ser novo marca na luta por igualdade

Os Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968,...

Matias, o menino negro fotografado com um boneco de “Star Wars”, foi a Hollywood. Por Cidinha da Silva

Em tempos de comunicação-relâmpago pela Web, a imagem viralizada...

para lembrar

Outras Impressões da Terça Manifestações livres sobre qualquer assunto

Por Leno F. Silva Desconheço todas as dores...

Nas escadarias da laicidade

O Plano de Proteção à Liberdade Religiosa empacou. Outra...

A poesia e a música de Vinicius de Moraes são de encanto eterno – Por: Fátima Oliveira

Vinicius de Moraes personifica bem o dito por Guimarães...

Homem é preso nos EUA por enviar email ao FBI com ameaças a Obama

Anton Caluori, 31 anos, apontou uma arma a agentes...

Fim da saída temporária apenas favorece facções

Relatado por Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o Senado Federal aprovou projeto de lei que põe fim à saída temporária de presos em datas comemorativas. O líder do governo na Casa, Jaques Wagner (PT-BA),...

Morre o político Luiz Alberto, sem ver o PT priorizar o combate ao racismo

Morreu na manhã desta quarta (13) o ex-deputado federal Luiz Alberto (PT-BA), 70. Ele teve um infarto. Passou mal na madrugada e chegou a ser...

Equidade só na rampa

Quando o secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli, perguntou "quem indica o procurador-geral da República? (...) O povo, através do seu...
-+=