A centenária Joventina

Quando Antonieta de Barros foi eleita a primeira deputada estadual negra do País, representante de Santa Catarina, em 1934, Joventina Lopes de Queiroz completava seus 30 anos e estava longe do exercício da cidadania, o voto. Sua vida era a roça, os três filhos e a vara da sinhá.

Enviado por Karla Maria  via Guest Post para o Portal Geledés

Joventina nasceu no município gaúcho de Barros Cassal. Sua mãe, Alzira, era escrava. Seu pai, não se sabe o nome. Toda a gestação foi escondida e, quando o bebê nasceu, uma menina, a mãe, contam, queria dá-la aos porcos, mas a sinhá Landim a pegou pra criar, e 109 anos depois, dona Joventina conta sua história, ou os fragmentos de uma vida perdida pela memória.

“A mãe dela, quando engravidou, passou nove meses escondida. Quando ela nasceu, a mãe queria atirar a negrinha no chiqueirinho, daí contam os parentes que a sinhá disse: ‘Olha, Alzira, se tu não quer criar essa negrinha não bota no chiqueirão com os porcos, dá essa negrinha pra mim’. Pegou a negrinha, enrolou num pelego e levou pra casa”, conta Zaída Lopes dos Santos, a filha mais nova de dona Joventina.

E, enquanto Zaída contava, dona Joventina fazia intervenções, demonstrando o que não pôde ser esquecido. “Era danada (a mãe branca), eu tinha que trabalhar, quisesse ou não”, disse a centenária, que, como na barriga da mãe, também era escondida em sua infância.

“Essa gente que criou ela tinha vergonha. Eles tinham um casão grande e quando chegava gente eles botavam ela na estrebaria, dormia em uma tábua, comia os restos do que eles comiam”, disse Zaída, com os olhos cheios d’água.

Já era século 20, mas a descrição de Zaída remete-nos aos séculos 18 e 19, quando a senzala era o espaço para homens e mulheres de pele negra. Verdade, que Joventina não tinha correntes para evitar a fuga, mas as amarras eram outras. “Quando criança, eu tava pequena, tinha que aprender a roçar e plantar. Quando não nascia o feijão, a ‘veia’ me dava uma surra. Quem não plantasse direito apanhava”, recorda dona Joventina.

“O problema é que a Abolição da Escravatura, em 1888, embora tenha sido fato notável na história da formação brasileira, foi muito incompleta”, disse, em 1984, o sociólogo e escritor brasileiro, Gilberto Freyre, autor de Casa grande & senzala.

“Eu praticamente fui criada dentro de uma estrebaria. Mesmo com meus pais adotivos tendo uma casa boa, eu ficava lá com os animais. E, como animais, para mim vinha só restos de comida. Lembro que falavam que a escravidão havia acabado, mas para mim não”, desabafou dona Joventina.

Da estrebaria à faxina − A jovem teve seu registro de nascimento aos 14 anos de idade, um de seus patrões solicitou o registro, mas o documento foi perdido. Para sustentar a si e a três crianças que gerou, dona Joventina trabalhava na lavoura e nas casas.

“Ela botava eu no pescoço, os dois agarradinhos nas pernas e um saco de roupa nas costas”, disse Zaída, que foi logo corrigida pela mãe. “Ela não contou que ela tinha cinco anos e ainda mamava, e ia me encontrar pra mamar, um dia eu dei uma surra e ela nunca mais me procurou”, disse Joventina, lembrando que “todos mamaram bastante, mas a que mamou mais foi tu. Era bem pretinha”.

“Se juntou” com um companheiro, com quem teve os três filhos. Disse que o marido não era fácil, quando descobriu que ele andava com outra mulher. “Ah, grudei a panela nas costas dele. Eu era muito ruim, e ele era danado, tinha que trazer ali ó, porque o nosso namoro pegava na mão e no laço”, contou com sorriso largo, demonstrando um tantinho de saudade do tempo já distante.

“Me separei dele. Não aguentava mais. Nunca mais falei com ele. A Zaída não lembra dele. E eu não sei se está vivo ou morto”, disse em entrevista ao jornal da cidade, O Espumoso. A ele também contou sobre seu segundo marido. “Me juntei com outro homem e fiz a burrada de deixar meus filhos com a mesma família que hávia me criado. Eles também viveram um tipo de escravidão”, explicou Joventina.

“Quando eu tive condições, fui lá buscar meus filhos e vivemos por ali uns 30 anos, na olaria do Miguel Colombo”, disse a gaúcha. Quando a filha mais nova se casou, decidiu voltar a Barra Cassal, onde permaneceu até o ano de 2006, quando a filha Zaída foi buscá-la.

“Queria que tu viesse quando eu busquei ela, pesava 22 quilos. Cheguei lá, achei ela quase morta, estava deitada em um estrado velho. Tinha um pedaço de cabeça de porco na mesinha, não tinha geladeira, nem fogão a gás. Os vizinhos, de vez em quando, levavam um pratinho de comida”, disse Zaída.

Quando questionada, porque não tinha ido buscá-la antes, Zaída disse que a mãe não era e não é fácil de convencer. “Ela dizia que não podia abandonar a casinha dela. Tem dias que olho pra ela e me engasgo de moção. Ela é muito forte mesmo, ela estava de um jeito triste, dei banho nela e no outro dia levei para o doutor, paguei 140 reais e mandei fazer um checkup da cabeça aos pés”, contou a filha.

E o checkup foi feito, revelando apenas a necessidade de uma alimentação mais variada, vitaminas e “biotônico”, como destaca a centenária. “Eu tenho mais de cem anos, tenho bisneto e sou forte”, e ainda disse que fuma.

“Eu fumo desde pequena, pegava os farelos da minha mãe branca e ia ‘pitá’. Tenho saúde, você vê? Se eu não tivesse saúde eu não estava aqui”, disse dona Joventina, desafiando a Ciência, com um cigarro na mão.

O dia a dia de dona Joventina, na Rua Habitar, em Espumoso, é tranquilo e garante “agradável”. Pela manhã, cedinho, e às vezes, às 9 horas, porque gosta de dormir, toma seu chimarrão e senta na calçada para a conversa com a vizinhança. “Todos cuidam de mim, é uma vizinhança boa e aqui tenho meus netos, eu peço cigarro…”.

Mas o cuidado parece nem sempre ser fácil e demanda paciência e, sobretudo, carinho. “Ela é uma fera, me arranca os cabelos. Chamo pra tomar um banhinho, e ela fica brava. Os meus filhos, todos, ajudam a cuidar, meu irmão disse pra colocarmos em um asilo, mas só se eu morrer. Tenho toda paciência e cautela, cuido bem, trato bem”, revela Zaída, enquanto levava a reportagem ao quarto de dona Joventina.

No quarto pequeno, há a cama e uma cômoda, nela, um tercinho. “De noite, eu vejo que ela pega o tercinho e reza bastante, às vezes, eu venho e falo, mãe vai dormir, mas ela diz ‘tava rezando minha filha’”, conta sorrindo Zaída.

“Acredito em Deus e rezo, faço minhas orações porque é bom a gente rezar. Se Deus não cuidasse da gente, não teria ninguém no mundo”, disse dona Joventina, ao se despedir da reportagem com um gesto carinhoso. “Muito Obrigada de vir até aqui, Deus há de lhe acompanhar aonde andar.”

Donas Joventinas pelo país − Dona Joventina é uma das 17 mil pessoas que ultrapassaram os cem anos no Brasil. Mas a centenária também compõe outra estatística: ela é uma das 15 milhões de pessoas que se declararam negras ao Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

De 1904 até 2008, os dados sobre o abandono escolar mudaram no País, mas ainda são lamentáveis. Segundo o 2º Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil: 2009-2010, a taxa de analfabetismo entre os negros é maior do que o dobro entre a população branca. Dos 6,8 milhões de analfabetos, em todo o país, que frequentam ou tinham frequentado a escola entre 2009 e 2011, 71,6% são pretos e pardos.

O relatório também aponta que 84,5% das crianças negras de até três anos não frequentavam creches; 7,5% das crianças negras de 6 anos estavam fora de qualquer tipo de escola; e apenas 41,6% estavam no sistema de ensino seriado.

Os dados são diferentes quando as crianças têm pele branca: 79,3% das crianças com menos de 3 anos não frequentavam creches; 4,8% das crianças de 6 anos estavam fora da rede de ensino; e 49% delas já frequentavam o ensino seriado.

Os números de acesso dos negros ao ensino superior são mais positivos. Ainda de acordo com o IBGE, o percentual de negros no ensino superior passou de 10,2% em 2001 para 35,8% em 2011.

Apesar dos melhores níveis de escolaridade, a presença dos negros entre ocupações de menor renda persiste. Pesquisa do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), revela que, enquanto 20% das negras e pardas são domésticas, entre brancas, o percentual é de 12%. Negras e pardas ganham menos nesse serviço, em média, do que as brancas.

Se dona Joventina estivesse hoje em idade produtiva e permanecesse na função de doméstica, poderia agora, em 2013, contar com direitos como o seguro-desemprego, indenização em demissões sem justa causa, conta no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), salário-família, adicional noturno, auxílio-creche e seguro contra acidente de trabalho.

Parece que a tradição secular de resistência negra pelo país, desde Antonieta Barros, Luiza Mahin, Preta Zeferina, Felipa do Pará, João Cândido, Oliveira Silveira entre tantos outros, passa a colher seus frutos, devagar e sempre.

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